Bases sociais do voto nas legislativas de 2022
Posted February 17th, 2022 at 10:21 am6 Comments
João Cancela e Pedro Magalhães
A Pitagórica, através do Alexandre Picoto e da Rita Marques da Silva, teve a amabilidade de partilhar connosco os dados da sondagem à boca das urnas que realizaram no dia 30. Como mediram não apenas o voto mas também o sexo, a idade e a instrução de todos os inquiridos, estes dados dão pistas iniciais importantes sobre as bases sociais dos partidos. Obviamente, são apenas três características sócio-demográficas entre muitas outras relevantes, cuja relação com o voto será analisada aqui de forma preliminar. Mas as sondagens à boca das urnas têm a vantagem, em relação a estudos pós-eleitorais, de usarem amostras muito grandes — onde diferenças, mesmo que pequenas, podem mais facilmente ser detectadas — e de serem menos afectadas pelos enviesamentos que a “recordação de voto” possa ter quando recolhida vários dias ou até semanas depois de uma eleição. O que ficamos então a saber com estes dados?
- Sexo
Em Portugal, pelo que sabe, homens e mulheres não votavam de forma sistematicamente diferente. Portugal parecia mesmo uma das poucas – a única? – democracia europeia onde isso sucedia. O “gender gap” moderno — o voto feminino mais à esquerda que o voto masculino — não tinha chegado ainda a Portugal.
Usamos o pretérito no parágrafo anterior porque tudo aponta para que 2022 tenha sido diferente:
A não ser nos casos do CDS-PP e do Livre, as diferenças são significativas: PS, BE e PAN tiveram um apoio desproporcionalmente mais alto entre as mulheres que votaram, e o oposto sucedeu com o PSD, a IL, a CDU e (especialmente) o Chega. Entre as mulheres, a esquerda e o centro-esquerda (se lhe juntarmos o PAN) somaram 58% no Continente; entre os homens, 49%.
Isto tem implicações para a composição dos eleitorados de cada partido. Quase dois em cada três dos eleitores que votaram no Chega são homens, ao passo que, no outro extremo, duas em cada três votantes dos PAN foram mulheres. Em parte, o “modern gender gap” português é criado por novos partidos, com capacidades de atração muito diferentes para homens e mulheres. Mas dito isto, a feminização dos votantes de um partido grande e estabelecido como o PS também contribuiu para esse fenómeno.
2. Idade
O que se sabia sobre a relação entre a idade dos eleitores e o seu voto?
- Que o BE era desproporcionalmente apoiado por eleitores mais jovens.
- Que PS e o PSD por eleitores mais velhos, apesar da dificuldade do PSD em captar esse eleitorado a partir das eleições de 2015.
O que tivemos em 2022?
Em 2022, as relações entre a idade e o voto no PS e no BE permaneceram fortes. Entre os votantes com mais de 54 anos — mais do que um terço do total dos votantes no Continente em 2022 — o PS recolheu 51% dos votos, contra apenas 27% entre os eleitores com menos de 25 anos. Pelo contrário, o BE recolheu 8% entre os mais jovens e apenas 3% entre os mais velhos.
Note-se também que o PSD disputou e obteve a primeira posição entre os mais jovens face ao PS (29% vs. 27%), mas perdeu por muito entre os mais velhos (51% vs. 28%). Apesar de as eleições terem terminado com um resultado bem mais favorável para o PS do que tinha sido captado pelas sondagens pré-eleitorais, estes padrões já eram anunciados por elas.
Os partidos mais novos — Chega, PAN, Livre e (especialmente) IL — foram desproporcionalmente mais apoiados pelos votantes mais jovens. E entre os menores de 25 anos, os partidos de direita ou centro-direita receberam 50% dos votos; entre os maiores de 54 anos, apenas 37%. A grande diferença aqui é a causada pela IL, que é por uma confortável margem o terceiro partido mais votado entre os eleitores mais jovens.
As implicações para a composição da base eleitoral de cada partido são visíveis no gráfico acima. Enquanto cerca de metade dos votantes no PS têm mais de 54 anos, apenas cerca de um em cada 10 dos que votaram no IL pertencem a esse grupo etário. Há um contraste claro entre os partidos “estabelecidos” e os novos a este respeito, com o BE e o Chega a ocuparem uma posição intermédia.
3. Instrução
À partida para esta eleição, o que sabíamos sobre a relação entre a instrução e o voto? Sabíamos que o PS tem tido mais apoio entre o eleitorado menos instruído, em contraste com o BE e o PSD, onde acontecia o inverso. No caso do PSD nem sempre tal sucedeu, mas a partir das eleições de 2011 acentuou-se a sua dependência do eleitorado com maiores níveis de instrução.
Em 2022, PS, BE e PSD mantiveram os seus perfis básicos. O primeiro teve muito mais apoio entre os votantes com escolaridade inferior ao secundário do que entre os que têm licenciatura (55% vs. 31%). No BE e no PSD ocorreu o inverso, assim como com o Livre e PAN. Mas nada disto se aproxima do padrão da IL, onde a desproporção foi enorme: votaram na IL 9% dos votantes com ensino superior, contra 1% dos que têm menos que o secundário. No Chega confirma-se algo que já se julgava saber de dados anteriores: menos apoio entre os universitários, mas apoio não muito maior entre os que têm menos que o secundário. Pelo contrário, é entre o escalão intermédio — votantes com o ensino secundário, não mostrados no gráfico — que o Chega teve mais votos em termos relativos (10%).
Quando olhamos para a composição dos votantes em cada partido, verifica-se que é entre os votantes no PS que se encontram mais pessoas que não completaram o ensino secundário. No extremo oposto estão a IL e o Livre, com três em cada cinco votantes com um diploma universitário. Com o perfil algo atípico já assinalado temos o Chega, com quase metade dos seus votantes a terem não menos (e não mais) que o ensino secundário.
4. Cruzando variáveis
Olhar de forma isolada para cada uma destas três variáveis é em si mesmo informativo, oferecendo várias pistas para identificar alguns elementos de continuidade e de novidade nesta eleição. Porém, uma vantagem crucial de trabalhar com uma amostra com esta dimensão reside na possibilidade de cruzar variáveis e de testar de que modo algumas das relações identificadas acima se reforçam mutuamente.
Para compreender o modo como género, idade e instrução interagem vamos examinar a distribuição das proporções de eleitores que afirmaram ter votado em alguns dos partidos que obtiveram representação parlamentar.
Começando pelo Partido Socialista, é possível verificar que o cruzamento do género com a idade revela o efeito cumulativo destas duas variáveis. De facto, em todos os escalões etários o apoio ao PS é bem mais forte entre as mulheres do que entre os homens, ao que acresce o progressivo incremento de apoio à medida que os eleitores ficam mais velhos. O contraste entre os eleitores do sexo masculino com menos de 35 anos, que apresentam uma probabilidade de votar no PS de 23%, e as eleitoras com mais de 54 anos (55%) é notório.
O cruzamento de género e idade revela um cenário bastante diferente no caso do PSD: as diferenças entre categorias são muito reduzidas, cifrando-se as proporções dos que afirmam ter votado no partido sempre algures entre um quarto e um terço. Em comparação com o PS, o apoio ao PSD é assim mais homogéneo entre o eleitorado, não se destacando nenhuma categoria sexo-idade em que o voto no partido tenha sido consideravelmente mais predominante.
Prosseguindo por ordem de votação obtida na eleição, vimos acima que o Chega obteve o dobro do apoio entre os homens face às mulheres, e também um apoio mais considerável entre os mais jovens por oposição aos mais velhos. A análise do cruzamento das variáveis sexo e idade mostra que o bom desempenho do partido de direita radical é especialmente vincado entre os homens com idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos (12%). Entre as mulheres, os níveis de voto no Chega são mais homogéneos, oscilando entre os 4% (55 ou mais anos) e os 6% (dos 35 aos 54 anos).
Recorrendo à terceira variável sobre a qual dispomos de informação, o nível de escolaridade, é possível dissecar de forma mais granular esta maior propensão para votar no Chega entre os homens com idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos. A adição deste factor à análise revela que é entre aqueles que não completaram o ensino superior que o apoio ao Chega é mais expressivo, excepto entre os que têm 55 anos ou mais, que como vimos se inclinam desproporcionalmente para o PS. Por outro lado, a capacidade por parte do Chega de atrair o voto dos mais instruídos, independentemente da idade destes, revela-se bastante mais diminuta, seja qual for o escalão etário.
Este sucesso entre as camadas menos escolarizadas do eleitorado masculino, e a concomitante dificuldade em atrair o voto dos mais instruídos, é parcialmente simétrica à da Iniciativa Liberal. Este partido compensa a sua fraca capacidade de atracção do voto entre os eleitores menos escolarizados com um assinalável desempenho entre aqueles que completaram o ensino superior, em particular os mais jovens. Um elemento adicional que reforça esta caracterização da base eleitoral da Iniciativa Liberal prende-se com o seu sucesso relativo entre os eleitores do sexo masculino que completaram o ensino superior (13%) e com idades compreendidas entre os 18 e os 34 anos (14%).
Tal como afirmámos acima, este padrão ofusca até o do Bloco de Esquerda, que era até 2019 o partido que mais se distinguia na sua capacidade de atrair o voto dos eleitores mais instruídos. Em 2022, contudo, o BE juntou à sua já habitual dificuldade em captar o voto dos menos instruídos um desempenho mediano entre os votantes com formação universitária do sexo masculino (5%) e mais velhos (5%).
Por fim, deixando de parte os dois partidos que tendo elegido deputados não formaram grupos parlamentares (Livre e PAN), a CDU deu continuidade à sequência de resultados em declínio que vem registando nos últimos actos eleitorais. Ainda assim, é de registar que, em sentido contrário à noção muitas vezes difundida de que o eleitorado comunista é largamente envelhecido – ideia que mesmo em eleições passadas obtém um suporte empírico modesto – a categoria idade-nível de escolaridade em que a coligação obteve um melhor resultado foi a dos jovens (18-24 anos) sem o ensino secundário, que contudo representa uma parcela muito reduzida dos votantes.
5. Parlamentos alternativos
Os dados analisados até aqui mostram que o perfil sócio-demográfico dos eleitores faz a diferença: há variações importantes no desempenho dos diferentes partidos que decorrem do género, da idade e da instrução dos portugueses. Para mostrar de forma mais tangível em que medida o resultado da eleição foi, entre outros factores, produto da composição social do eleitorado, iremos ilustrar as implicações que estas diferentes propensões poderiam produzir no peso relativo dos diferentes partidos representados no parlamento. Que tipo de correlações de forças poderiam ter resultado das eleições de 2022 se apenas tivessem contado os votos de camadas específicas do eleitorado?
Antes de prosseguirmos com o exercício importa fazer um apontamento técnico sobre as etapas que permitiram produzir os cálculos a seguir reproduzidos. A sondagem à boca das urnas da Pitagórica foi conduzida nos 18 círculos eleitorais do continente. Calculámos os resultados para cada um destes círculos usando como universo eleitoral o conjunto de eleitores em análise (por exemplo, apenas as mulheres ou os eleitores com menos de 35 anos). Assumimos que a magnitude dos círculos se manteria constante em todas as simulações independentemente do número de eleitores considerados em cada simulação específica. Dado que o estudo da Pitagórica foi aplicado exclusivamente no Continente, não fazemos qualquer inferência relativa à distribuição de mandatos nas Regiões Autónomas e no estrangeiro. Como tal, em todos os cenários são adicionados 7 deputados ao total do PS (3 eleitos pelos Açores, 3 pela Madeira e 1 pelo círculo eleitoral dos emigrantes residentes fora da Europa) e 6 ao total do PSD (2 pelos Açores, 3 pela Madeira e 1 pelo mesmo círculo da emigração). À data a que escrevemos não existem ainda resultados finais da eleição no círculo eleitoral da emigração na Europa, que terá de ser repetida; como tal, deixamos dois mandatos por determinar, com a correspondente indicação.
Há que sublinhar que, mais do que prever com exactidão o número de deputados por partido em cada um dos cenários, este exercício procura antes ilustrar e chamar a atenção para as potenciais implicações práticas das diferenças nas bases sociais dos partidos portugueses. Cada um dos cenários deve ser contrastado com a composição efectiva do Parlamento à data de 16 de Fevereiro, que está reproduzida abaixo: 118 mandatos para o PS, 77 para o PSD, 12 para o Chega, 8 para a Iniciativa Liberal, 6 para a CDU, 5 para o BE, 1 para o Livre e outro para o PAN. Falta ainda atribuir os dois mandatos relativos ao círculo da emigração na Europa.
Suponhamos por um momento que as únicas a votar em 30 de Janeiro tinham sido as mulheres, independentemente da sua idade. Que tipo de parlamento teria daí resultado? Podemos estar razoavelmente confiantes de que, em termos globais, o equilíbrio de forças penderia mais para a esquerda. O PS teria reforçado a sua maioria absoluta, ao passo que o BE e o PAN (mas não a CDU) aumentariam também as suas respectivas representações parlamentares. Em sentido contrário, apesar de todos os partidos à direita do PS perderem deputados neste cenário, o caso mais flagrante seria o do Chega, com um grupo parlamentar que ficaria reduzido a metade daquilo que se verificou na realidade.
As bancadas da Assembleia da República que resultassem exclusivamente do voto masculino apresentariam também diferenças importantes em relação àquilo que foi o resultado de 30 de Janeiro. Neste cenário em que só os homens votavam, o PS ficaria bastante aquém da maioria absoluta, mesmo descontando os dois mandatos por atribuir. A esquerda no seu conjunto (PS, BE, CDU e Livre) teria uma maioria mais estreita (120 deputados), e o PAN não estaria sequer representado no parlamento. Os partidos à direita do PS teriam todos crescido, sem excepção, e em proporções mais ou menos semelhantes entre si.
O cenário mais radicalmente distinto daquele que efetivamente se verificou resulta de tomar em consideração apenas o voto dos eleitores com idade inferior a 35 anos. Nesta hipotética Assembleia da República sobressaem dois traços de distinção vincada em relação aos resultados reais. A fragmentação parlamentar seria muito mais pronunciada, com PS e PSD empatados cada um com 82 mandatos. A IL teria, por larga margem, o terceiro grupo parlamentar (24 mandatos). Mesmo entre os pequenos partidos podemos projetar que teria havido ganhos importantes, com o Livre a eleger três deputados e o PAN cinco. Mas a diferença fundamental seria a incapacidade de o PS se aliar aos restantes partidos à esquerda (incluindo aqui o PAN) para produzir uma maioria de 116 deputados: todos somados teriam 105 (com dois mandatos ainda por atribuir). PSD e IL chegariam juntos aos 106 mandatos, restando ainda 17 deputados do Chega.
O contraste entre este cenário e o que resultaria de uma eleição em que apenas os cidadãos com mais de 34 anos tivessem votado é flagrante: nesse caso estimamos que o PS teria reforçado ainda mais a sua maioria absoluta (122 deputados), a IL estaria reduzida a um grupo parlamentar de 3 deputados e PAN e Livre ficariam fora do parlamento, ao contrário do CDS, que conservaria a sua representação parlamentar, mesmo que limitada a um só mandato.
Terá sido sobretudo graças ao apoio dos eleitores mais jovens que a IL aumentou de forma expressiva o seu grupo parlamentar, que o Livre elegeu um deputado e que o PAN manteve a sua representação parlamentar. Mas no que toca às linhas fundamentais do peso de cada partido e, em especial, ao tamanho da maioria obtida pelo PS parece ser seguro afirmar que os eleitores mais velhos desempenharam um papel crucial. Que esta projecção esteja, apesar de tudo, mais alinhada com a distribuição que de facto se veio a verificar não surpreende: afinal, os eleitores com menos de 35 anos representaram cerca de 22% dos votantes, face aos 78% com mais de 34 anos.
6. Conclusão
A aproximação da campanha ao acto eleitoral de Janeiro foi caracterizada por um ambiente de incerteza que desembocou num desfecho que muitos terão considerado surpreendente. Ao longo dos próximos meses, e talvez anos, é de esperar que a investigação se debruce sobre uma série de questões relacionadas com os cálculos utilitários dos eleitores, o papel das lideranças e da comunicação política, as percepções sobre a economia e o impacto da pandemia no próprio acto eleitoral. Para cada pergunta para a qual se venha a obter uma resposta – sempre provisória – haverá seguramente muitas outras que ficarão por resolver.
O nosso ângulo de análise neste texto foi mais simples. Com recurso à sondagem de boca das urnas da Pitagórica, revisitámos algumas hipóteses clássicas sobre o comportamento dos eleitores portugueses, olhando para três atributos fundamentais: género, idade e instrução. Nessa medida percebemos que esta eleição reforçou alguns elementos que já estavam presentes em actos anteriores, como a capacidade de o PS atrair o voto do eleitorado mais velho e a preferência dos eleitores mais instruídos por partidos à direita do espectro político. Mas parece haver também novas pautas a marcar a associação entre categorias sócio-demográficas e o voto. Dois exemplos são a emergência de uma assimetria de género no comportamento eleitoral e a assinalável capacidade da Iniciativa Liberal e do Chega em atrair o voto de segmentos muito específicos do eleitorado. No quadro das transformações em curso na Europa e noutras democracias nas bases sociais dos partidos, a única certeza parece ser que o caso português continuará a ser merecedor de atenção nos próximos tempos.
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