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Pedro Magalhães

Margens de Erro

Bases sociais das intenções de voto em 2023

Posted January 15th, 2024 at 7:57 pm4 Comments

Foram conduzidas quatro sondagens ICS/Iscte ao longo do ano passado (março, maio, setembro e novembro). Quando se quer perceber qual a relação entre a pertença a determinados grupos sócio-demográficos e o voto (ou, neste caso, a intenção de voto), um problema habitual, especialmente no estudo de opções de voto menos prevalecentes, é a dimensão da amostra. Por isso fiz o exercício de fundir as quatro bases de dados numa única, presumindo que as bases sociais destas intenções de voto não se terão alterado dramaticamente ao longo do ano. Ficamos com mais de 3.500 inquiridos.

O passo seguinte foi estimar um modelo multinomial com a intenção de voto como variável dependente ou explicada (colapsando PSD + CDS em AD e os partidos mais pequenos de todos em "Outros") e as seguintes variáveis explicativas: sexo, idade (e idade2, para estimar efeitos não-lineares), grau de instrução mais elevado que se completou ("menos que secundária", "secundária" e "superior"), conforto com o rendimento ("baixo" — se se vive com alguma ou muita dificuldade com o rendimento disponível — ou "alto" — vive-se com conforto ou "dá para viver"), sindicalização (actual ou passada vs. não sindicalizados) e frequência de serviços religiosos (regular — uma vez por semana ou mais — ou irregular ou nula), assim como efeitos fixos para cada sondagem.

A seguir, pode estimar-se a probabilidade ajustada média de se ter seleccionado cada uma das intenções de voto de acordo com a pertença a diferentes grupos. Por exemplo, é possível estimar a probabilidade de homens e mulheres terem declarado cada uma das intenções de voto "controlando" (mantendo constante) os efeitos das restantes variáveis. Ou seja: independentemente da sua idade, do seu nível de instrução, do seu conforto com o rendimento, de serem ou não sindicalizados, da frequência com que participam em serviços religiosos ou de a sondagem ter sido realizada em março, maio, setembro ou novembro, qual a probabilidade prevista de homens e mulheres ter declarado cada uma das intenções de voto? O gráfico abaixo responde a esta pergunta.

Há apenas duas opções onde aparecem diferenças significativas entre homens e mulheres. Na opção pelo Chega, claramente mais frequente entre os homens do que entre as mulheres; e na opção "Não sei" — os chamados "indecisos" —, mais frequentemente escolhida por mulheres do que por homens. Em todos os restantes casos, as diferenças não são significativas, pelo menos que toca às "intenções" (pode não vir a ser assim no voto propriamente dito, obviamente).

Os resultados sobre a idade aparecem em quatro gráficos diferentes. O primeiro reflecte a relação entre ter-se uma determinada idade (em intervalos de 5 anos) e a probabilidade de declarar tencionar votar no PS, na AD ou no Chega.

Entre os mais jovens de todos, é mais provável que declarem tencionar votar na AD ou no Chega do que no PS. Depois, a forte relação entre idade e a intenção de voto na AD e (especialmente) no PS impõe-se, com o segundo a ultrapassar a primeira por volta dos 50 e poucos anos. Pelo contrário, a probabilidade de tencionar votar Chega diminui com a idade (mais uma vez, repito, controlando o efeito das restantes variáveis sócio-demográficas).

A probabilidade de tencionar votar BE e (especialmente) IL é, como já se sabia, maior entre os mais jovens do que entre os mais velhos, sucedendo o oposto com a CDU.

Mesmo juntando as bases de dados, os números aqui são baixos, causando intervalos de confiança enormes. Mas a relação entre a idade e a intenção de voto quer o PAN quer nos "Outros" é clara e negativa. No Livre, um padrão algo distinto, mas mesmo assim com apoio muito residual nas idades mais avançadas.

Mais jovens, mais indecisos. Este "não votaria", claro, não pode ser confundido com qualquer previsão de abstenção. Quem não vota também responde menos a sondagens, e mesmo que responda muitas vezes acaba por não votar mesmo tendo declarado uma intenção de voto (o que sucede especialmente entre os mais jovens).

O rendimento aqui é abordado de forma "subjectiva": qual o grau de dificuldade ou de conforto com que se sente viver com o rendimento de que se dispõe?

As diferenças não são significativas. Recordem que isto não quer dizer que diferentes grupos de rendimento, mesmo medidos de forma "subjectiva", não tencionem votar de maneira diferente. Quer apenas dizer que, quando controlamos os efeitos de outras variáveis, o grau de conforto com o rendimento não tem efeitos claros. Nomeadamente quanto controlamos o efeito da instrução:

A probabilidade de tencionar votar PS é significativamente mais alta entre quem não completou o secundário do que entre quem o completou ou mesmo quem tem ensino superior, mesmo quando tomamos em conta o efeito da idade e de outras variáveis. Na AD, na IL, no BE e no Livre passa-se o oposto: quanto maior o nível de instrução, maior a probabilidade de tencionar votar nestes partidos (mesmo que no BE e no Livre a diferença entre secundário e superior não seja signficativa). E ter-se o ensino superior tem tido uma clara relação negativa com tencionar votar-se no Chega.

A relação entre ser-se (ou ter-se sido) sindicalizado e a intenção de voto é reduzida, mas manifesta-se de forma significativa na intenção de voto no BE e especialmente na CDU, e de forma inversa na intenção de não votar (menos escolhida pelos sindicalizados).

Finalmente, ser-se praticante aumenta a probabilidade de votar AD (e por pouco que não faz o mesmo no PS), e diminui a probabilidade de votar Chega, BE e Livre. Como já se sabia, não há uma clivagem religiosa esquerda-direita em Portugal.

Importa recordar que:

  • São intenções de voto, recolhidas ao longo de um ano,
  • Resultam de um modelo em que o efeito de cada variável é estimado controlando os das restantes variáveis explicativas.

Dito isto, são pistas curiosas, acho, sobre as bases sociais destes partidos, em termos das intenções de voto recolhidas no último ano.

by Pedro Magalhães

Bases sociais do voto nas legislativas de 2022

Posted February 17th, 2022 at 10:21 am4 Comments

João Cancela e Pedro Magalhães

A Pitagórica, através do Alexandre Picoto e da Rita Marques da Silva, teve a amabilidade de partilhar connosco os dados da sondagem à boca das urnas que realizaram no dia 30. Como mediram não apenas o voto mas também o sexo, a idade e a instrução de todos os inquiridos, estes dados dão pistas iniciais importantes sobre as bases sociais dos partidos. Obviamente, são apenas três características sócio-demográficas entre muitas outras relevantes, cuja relação com o voto será analisada aqui de forma preliminar. Mas as sondagens à boca das urnas têm a vantagem, em relação a estudos pós-eleitorais, de usarem amostras muito grandes — onde diferenças, mesmo que pequenas, podem mais facilmente ser detectadas — e de serem menos afectadas pelos enviesamentos que a “recordação de voto” possa ter quando recolhida vários dias ou até semanas depois de uma eleição. O que ficamos então a saber com estes dados?

  1. Sexo

Em Portugal, pelo que sabe, homens e mulheres não votavam de forma sistematicamente diferente. Portugal parecia mesmo uma das poucas - a única? - democracia europeia onde isso sucedia. O "gender gap" moderno — o voto feminino mais à esquerda que o voto masculino — não tinha chegado ainda a Portugal.

Usamos o pretérito no parágrafo anterior porque tudo aponta para que 2022 tenha sido diferente:

A não ser nos casos do CDS-PP e do Livre, as diferenças são significativas: PS, BE e PAN tiveram um apoio desproporcionalmente mais alto entre as mulheres que votaram, e o oposto sucedeu com o PSD, a IL, a CDU e (especialmente) o Chega. Entre as mulheres, a esquerda e o centro-esquerda (se lhe juntarmos o PAN) somaram 58% no Continente; entre os homens, 49%. 

Isto tem implicações para a composição dos eleitorados de cada partido. Quase dois em cada três dos eleitores que votaram no Chega são homens, ao passo que, no outro extremo, duas em cada três votantes dos PAN foram mulheres. Em parte, o “modern gender gap” português é criado por novos partidos, com capacidades de atração muito diferentes para homens e mulheres. Mas dito isto, a feminização dos votantes de um partido grande e estabelecido como o PS também contribuiu para esse fenómeno.

2. Idade

O que se sabia sobre a relação entre a idade dos eleitores e o seu voto?

  • Que o BE era desproporcionalmente apoiado por eleitores mais jovens.
  • Que PS e o PSD por eleitores mais velhos, apesar da dificuldade do PSD em captar esse eleitorado a partir das eleições de 2015.

O que tivemos em 2022?

Em 2022, as relações entre a idade e o voto no PS e no BE permaneceram fortes. Entre os votantes com mais de 54 anos — mais do que um terço do total dos votantes no Continente em 2022 — o PS recolheu 51% dos votos, contra apenas 27% entre os eleitores com menos de 25 anos. Pelo contrário, o BE recolheu 8% entre os mais jovens e apenas 3% entre os mais velhos. 

Note-se também que o PSD disputou e obteve a primeira posição entre os mais jovens face ao PS (29% vs. 27%), mas perdeu por muito entre os mais velhos (51% vs. 28%). Apesar de as eleições terem terminado com um resultado bem mais favorável para o PS do que tinha sido captado pelas sondagens pré-eleitorais, estes padrões já eram anunciados por elas.

Os partidos mais novos — Chega, PAN, Livre e (especialmente) IL — foram desproporcionalmente mais apoiados pelos votantes mais jovens. E entre os menores de 25 anos, os partidos de direita ou centro-direita receberam 50% dos votos; entre os maiores de 54 anos, apenas 37%. A grande diferença aqui é a causada pela IL, que é por uma confortável margem o terceiro partido mais votado entre os eleitores mais jovens. 

As implicações para a composição da base eleitoral de cada partido são visíveis no gráfico acima. Enquanto cerca de metade dos votantes no PS têm mais de 54 anos, apenas cerca de um em cada 10 dos que votaram no IL pertencem a esse grupo etário. Há um contraste claro entre os partidos “estabelecidos” e os novos a este respeito, com o BE e o Chega a ocuparem uma posição intermédia.

3. Instrução

À partida para esta eleição, o que sabíamos sobre a relação entre a instrução e o voto? Sabíamos que o PS tem tido mais apoio entre o eleitorado menos instruído, em contraste com o BE e o PSD, onde acontecia o inverso. No caso do PSD nem sempre tal sucedeu, mas a partir das eleições de 2011 acentuou-se a sua dependência do eleitorado com maiores níveis de instrução. 

Em 2022, PS, BE e PSD mantiveram os seus perfis básicos. O primeiro teve muito mais apoio entre os votantes com escolaridade inferior ao secundário do que entre os que têm licenciatura (55% vs. 31%). No BE e no PSD ocorreu o inverso, assim como com o Livre e PAN. Mas nada disto se aproxima do padrão da IL, onde a desproporção foi enorme: votaram na IL 9% dos votantes com ensino superior, contra 1% dos que têm menos que o secundário. No Chega confirma-se algo que já se julgava saber de dados anteriores: menos apoio entre os universitários, mas apoio não muito maior entre os que têm menos que o secundário. Pelo contrário, é entre o escalão intermédio — votantes com o ensino secundário, não mostrados no gráfico — que o Chega teve mais votos em termos relativos (10%).

Quando olhamos para a composição dos votantes em cada partido, verifica-se que é entre os votantes no PS que se encontram mais pessoas que não completaram o ensino secundário. No extremo oposto estão a IL e o Livre, com três em cada cinco votantes com um diploma universitário. Com o perfil algo atípico já assinalado temos o Chega, com quase metade dos seus votantes a terem não menos (e não mais) que o ensino secundário.

4. Cruzando variáveis

Olhar de forma isolada para cada uma destas três variáveis é em si mesmo informativo, oferecendo várias pistas para identificar alguns elementos de continuidade e de novidade nesta eleição. Porém, uma vantagem crucial de trabalhar com uma amostra com esta dimensão reside na possibilidade de cruzar variáveis e de testar de que modo algumas das relações identificadas acima se reforçam mutuamente. 

Para compreender o modo como género, idade e instrução interagem vamos examinar a distribuição das proporções de eleitores que afirmaram ter votado em alguns dos partidos que obtiveram representação parlamentar.

Começando pelo Partido Socialista, é possível verificar que o cruzamento do género com a idade revela o efeito cumulativo destas duas variáveis. De facto, em todos os escalões etários o apoio ao PS é bem mais forte entre as mulheres do que entre os homens, ao que acresce o progressivo incremento de apoio à medida que os eleitores ficam mais velhos. O contraste entre os eleitores do sexo masculino com menos de 35 anos, que apresentam uma probabilidade de votar no PS de 23%, e as eleitoras com mais de 54 anos (55%) é notório.

O cruzamento de género e idade revela um cenário bastante diferente no caso do PSD: as diferenças entre categorias são muito reduzidas, cifrando-se as proporções dos que afirmam ter votado no partido sempre algures entre um quarto e um terço. Em comparação com o PS, o apoio ao PSD é assim mais homogéneo entre o eleitorado, não se destacando nenhuma categoria sexo-idade em que o voto no partido tenha sido consideravelmente mais predominante. 

Prosseguindo por ordem de votação obtida na eleição, vimos acima que o Chega obteve o dobro do apoio entre os homens face às mulheres, e também um apoio mais considerável entre os mais jovens por oposição aos mais velhos. A análise do cruzamento das variáveis sexo e idade mostra que o bom desempenho do partido de direita radical é especialmente vincado entre os homens com idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos (12%). Entre as mulheres, os níveis de voto no Chega são mais homogéneos, oscilando entre os 4% (55 ou mais anos) e os 6% (dos 35 aos 54 anos). 

Recorrendo à terceira variável sobre a qual dispomos de informação, o nível de escolaridade, é possível dissecar de forma mais granular esta maior propensão para votar no Chega entre os homens com idades compreendidas entre os 18 e os 54 anos. A adição deste factor à análise revela que é entre aqueles que não completaram o ensino superior que o apoio ao Chega é mais expressivo, excepto entre os que têm 55 anos ou mais, que como vimos se inclinam desproporcionalmente para o PS. Por outro lado, a capacidade por parte do Chega de atrair o voto dos mais instruídos, independentemente da idade destes, revela-se bastante mais diminuta, seja qual for o escalão etário. 

Este sucesso entre as camadas menos escolarizadas do eleitorado masculino, e a concomitante dificuldade em atrair o voto dos mais instruídos, é parcialmente simétrica à da Iniciativa Liberal. Este partido compensa a sua fraca capacidade de atracção do voto entre os eleitores menos escolarizados com um assinalável desempenho entre aqueles que completaram o ensino superior, em particular os mais jovens. Um elemento adicional que reforça esta caracterização da base eleitoral da Iniciativa Liberal prende-se com o seu sucesso relativo entre os eleitores do sexo masculino que completaram o ensino superior (13%) e com idades compreendidas entre os 18 e os 34 anos (14%).

Tal como afirmámos acima, este padrão ofusca até o do Bloco de Esquerda, que era até 2019 o partido que mais se distinguia na sua capacidade de atrair o voto dos eleitores mais instruídos. Em 2022, contudo, o BE juntou à sua já habitual dificuldade em captar o voto dos menos instruídos um desempenho mediano entre os votantes com formação universitária do sexo masculino (5%) e mais velhos (5%).

Por fim, deixando de parte os dois partidos que tendo elegido deputados não formaram grupos parlamentares (Livre e PAN), a CDU deu continuidade à sequência de resultados em declínio que vem registando nos últimos actos eleitorais. Ainda assim, é de registar que, em sentido contrário à noção muitas vezes difundida de que o eleitorado comunista é largamente envelhecido – ideia que mesmo em eleições passadas obtém um suporte empírico modesto – a categoria idade-nível de escolaridade em que a coligação obteve um melhor resultado foi a dos jovens (18-24 anos) sem o ensino secundário, que contudo representa uma parcela muito reduzida dos votantes. 

5. Parlamentos alternativos

Os dados analisados até aqui mostram que o perfil sócio-demográfico dos eleitores faz a diferença: há variações importantes no desempenho dos diferentes partidos que decorrem do género, da idade e da instrução dos portugueses. Para mostrar de forma mais tangível em que medida o resultado da eleição foi, entre outros factores, produto da composição social do eleitorado, iremos ilustrar as implicações que estas diferentes propensões poderiam produzir no peso relativo dos diferentes partidos representados no parlamento. Que tipo de correlações de forças poderiam ter resultado das eleições de 2022 se apenas tivessem contado os votos de camadas específicas do eleitorado? 

Antes de prosseguirmos com o exercício importa fazer um apontamento técnico sobre as etapas que permitiram produzir os cálculos a seguir reproduzidos. A sondagem à boca das urnas da Pitagórica foi conduzida nos 18 círculos eleitorais do continente. Calculámos os resultados para cada um destes círculos usando como universo eleitoral o conjunto de eleitores em análise (por exemplo, apenas as mulheres ou os eleitores com menos de 35 anos). Assumimos que a magnitude dos círculos se manteria constante em todas as simulações independentemente do número de eleitores considerados em cada simulação específica. Dado que o estudo da Pitagórica foi aplicado exclusivamente no Continente, não fazemos qualquer inferência relativa à distribuição de mandatos nas Regiões Autónomas e no estrangeiro. Como tal, em todos os cenários são adicionados 7 deputados ao total do PS (3 eleitos pelos Açores, 3 pela Madeira e 1 pelo círculo eleitoral dos emigrantes residentes fora da Europa) e 6 ao total do PSD (2 pelos Açores, 3 pela Madeira e 1 pelo mesmo círculo da emigração). À data a que escrevemos não existem ainda resultados finais da eleição no círculo eleitoral da emigração na Europa, que terá de ser repetida; como tal, deixamos dois mandatos por determinar, com a correspondente indicação. 

Há que sublinhar que, mais do que prever com exactidão o número de deputados por partido em cada um dos cenários, este exercício procura antes ilustrar e chamar a atenção para as potenciais implicações práticas das diferenças nas bases sociais dos partidos portugueses. Cada um dos cenários deve ser contrastado com a composição efectiva do Parlamento à data de 16 de Fevereiro, que está reproduzida abaixo: 118 mandatos para o PS, 77 para o PSD, 12 para o Chega, 8 para a Iniciativa Liberal, 6 para a CDU, 5 para o BE, 1 para o Livre e outro para o PAN. Falta ainda atribuir os dois mandatos relativos ao círculo da emigração na Europa. 

Suponhamos por um momento que as únicas a votar em 30 de Janeiro tinham sido as mulheres, independentemente da sua idade. Que tipo de parlamento teria daí resultado? Podemos estar razoavelmente confiantes de que, em termos globais, o equilíbrio de forças penderia mais para a esquerda. O PS teria reforçado a sua maioria absoluta, ao passo que o BE e o PAN (mas não a CDU) aumentariam também as suas respectivas representações parlamentares. Em sentido contrário, apesar de todos os partidos à direita do PS perderem deputados neste cenário, o caso mais flagrante seria o do Chega, com um grupo parlamentar que ficaria reduzido a metade daquilo que se verificou na realidade.

As bancadas da Assembleia da República que resultassem exclusivamente do voto masculino apresentariam também diferenças importantes em relação àquilo que foi o resultado de 30 de Janeiro. Neste cenário em que só os homens votavam, o PS ficaria bastante aquém da maioria absoluta, mesmo descontando os dois mandatos por atribuir. A esquerda no seu conjunto (PS, BE, CDU e Livre) teria uma maioria mais estreita (120 deputados), e o PAN não estaria sequer representado no parlamento. Os partidos à direita do PS teriam todos crescido, sem excepção, e em proporções mais ou menos semelhantes entre si. 

O cenário mais radicalmente distinto daquele que efetivamente se verificou resulta de tomar em consideração apenas o voto dos eleitores com idade inferior a 35 anos. Nesta hipotética Assembleia da República sobressaem dois traços de distinção vincada em relação aos resultados reais. A fragmentação parlamentar seria muito mais pronunciada, com PS e PSD empatados cada um com 82 mandatos. A IL teria, por larga margem, o terceiro grupo parlamentar (24 mandatos). Mesmo entre os pequenos partidos podemos projetar que teria havido ganhos importantes, com o Livre a eleger três deputados e o PAN cinco. Mas a diferença fundamental seria a incapacidade de o PS se aliar aos restantes partidos à esquerda (incluindo aqui o PAN) para produzir uma maioria de 116 deputados: todos somados teriam 105 (com dois mandatos ainda por atribuir). PSD e IL chegariam juntos aos 106 mandatos, restando ainda 17 deputados do Chega.

O contraste entre este cenário e o que resultaria de uma eleição em que apenas os cidadãos com mais de 34 anos tivessem votado é flagrante: nesse caso estimamos que o PS teria reforçado ainda mais a sua maioria absoluta (122 deputados), a IL estaria reduzida a um grupo parlamentar de 3 deputados e PAN e Livre ficariam fora do parlamento, ao contrário do CDS, que conservaria a sua representação parlamentar, mesmo que limitada a um só mandato. 

Terá sido sobretudo graças ao apoio dos eleitores mais jovens que a IL aumentou de forma expressiva o seu grupo parlamentar, que o Livre elegeu um deputado e que o PAN manteve a sua representação parlamentar. Mas no que toca às linhas fundamentais do peso de cada partido e, em especial, ao tamanho da maioria obtida pelo PS parece ser seguro afirmar que os eleitores mais velhos desempenharam um papel crucial. Que esta projecção esteja, apesar de tudo, mais alinhada com a distribuição que de facto se veio a verificar não surpreende: afinal, os eleitores com menos de 35 anos representaram cerca de 22% dos votantes, face aos 78% com mais de 34 anos.

6. Conclusão

A aproximação da campanha ao acto eleitoral de Janeiro foi caracterizada por um ambiente de incerteza que desembocou num desfecho que muitos terão considerado surpreendente. Ao longo dos próximos meses, e talvez anos, é de esperar que a investigação se debruce sobre uma série de questões relacionadas com os cálculos utilitários dos eleitores, o papel das lideranças e da comunicação política, as percepções sobre a economia e o impacto da pandemia no próprio acto eleitoral. Para cada pergunta para a qual se venha a obter uma resposta – sempre provisória – haverá seguramente muitas outras que ficarão por resolver.

O nosso ângulo de análise neste texto foi mais simples. Com recurso à sondagem de boca das urnas da Pitagórica, revisitámos algumas hipóteses clássicas sobre o comportamento dos eleitores portugueses, olhando para três atributos fundamentais: género, idade e instrução. Nessa medida percebemos que esta eleição reforçou alguns elementos que já estavam presentes em actos anteriores, como a capacidade de o PS atrair o voto do eleitorado mais velho e a preferência dos eleitores mais instruídos por partidos à direita do espectro político. Mas parece haver também novas pautas a marcar a associação entre categorias sócio-demográficas e o voto. Dois exemplos são a emergência de uma assimetria de género no comportamento eleitoral e a assinalável capacidade da Iniciativa Liberal e do Chega em atrair o voto de segmentos muito específicos do eleitorado. No quadro das transformações em curso na Europa e noutras democracias nas bases sociais dos partidos, a única certeza parece ser que o caso português continuará a ser merecedor de atenção nos próximos tempos. 

by Pedro Magalhães

O regime de Ronald Reagan

Posted November 13th, 2020 at 9:27 am4 Comments

Expresso, 6/10/2020

No momento em que escrevo, o vencedor das eleições presidenciais americanas e a composição das duas câmaras do Congresso ainda não são conhecidos. Mas esses resultados já não eram muito relevantes para os três artigos anteriores desta série. Ganhe quem ganhar as eleições americanas de 2020, isso não muda a polarização e tribalização do eleitorado americanoo arcaísmo e a disfuncionalidade das instituições eleitorais do país ou as debilidades organizativas do partido Democrata. E acho que também não vai alterar aquilo que se segue.

Nos últimos 40 anos, os Estados Unidos tiveram seis presidentes diferentes, 24 anos de governação republicana, 16 democrata e quase todas as combinações possíveis de controlo das duas câmaras do Congresso. De um certo ponto de vista, no entanto, tiveram um único regime. Chamemos-lhe, para simplificar, o regime de Ronald Reagan. O historiador e cientista político Stephen Skowronek explica que, tal como Lincoln e Roosevelt, Reagan foi um presidente “reconstrutivo”, que foi capaz de inaugurar uma nova agenda política, baseada em novas ideias e numa nova coligação de interesses. O regime assim criado a partir dos destroços do New Deal foi o da diminuição da regulação estatal da economia, da erradicação dos sindicatos como forma de organização da esmagadora maioria dos trabalhadores, do aumento do poder dos grandes acionistas e das administrações das empresas, da manutenção do salário mínimo a níveis baixos, do crescimento exponencial do sector financeiro, da redução da progressividade dos impostos e da contenção dos gastos sociais.

Os presidentes seguintes ou não quiseram (Bush pai e especialmente filho), ou não puderam (Clinton e Obama) mudar este regime. Clinton desistiu: “The era of big government is over”, declarou em 1996, depois de ter falhado a reforma do sistema de saúde, dado prioridade à redução do défice e aprovado uma reforma conservadora da segurança social. Obama, que chegou ao poder no meio da maior crise económica desde a Grande Depressão e com duas guerras em curso no Médio Oriente, baseou a sua reforma do sistema de saúde no plano de um governador republicano (Romney) e enfrentou um Congresso crescentemente hostil, com o qual procurou, durante muito tempo, “negociar”. Por seu lado, Trump disse muitas coisas – umas a favor e outras contra esta ortodoxia – mas era certamente o candidato de quem menos se podia esperar que mudasse algo de fundamental na ordem económica prevalecente.

O regime de Reagan deu aos Estados Unidos a vitória na Guerra Fria, enquanto mantinha enormes níveis de prosperidade. Entre todos os países da OCDE, o rendimento disponível de uma família média americana, ajustado para o poder de compra e depois de impostos, é o mais alto. Contudo, o reaganismo trouxe também outras coisas. Nos últimos 40 anos, o rendimento dos 5% mais ricos aumentou continuamente, no que representa o maior crescimento de qualquer país desenvolvido, ao mesmo tempo que o rendimento dos restantes 95% da população (que antes acompanhava o crescimento do PIB per capita e da produtividade) estagnou. Este aumento da desigualdade não foi compensado por mobilidade social significativa. Pelo contrário: em comparação com a geração dos seus pais, foram menos os americanos nascidos nos anos 70 e 80 do século passado que conseguiram ascender socialmente, e foram mais os que tiveram percursos descendentes. A esperança de vida à nascença de um americano é hoje a mais baixa, e a mortalidade infantil a mais alta, entre as democracias ricas da OCDE; e a disparidade entre americanos ricos e pobres em relação a estes indicadores não para de aumentar. É certo que algumas destas tendências já vinham de trás, fruto de mudanças na estrutura económica tanto nacional como mundial. Mas, quando se comparam os Estados Unidos com os restantes países ricos do Ocidente, é fácil ver que o reaganismo facilitou e reforçou tudo aquilo que não criou ele próprio.

Nos inquéritos à população dos EUA, os níveis de satisfação com “a maneira como as coisas vão hoje no país” ou a perceção de que o país vai “na direção certa” encontram-se estagnados há quase 20 anos a níveis baixos. Os norte-americanos estão menos satisfeitos com a vida e sentem-se menos felizes do que antes – menos do que em grande parte das democracias desenvolvidas, e muito menos do que o nível de prosperidade do país faria esperarQuase dois em cada três dizem que há demasiada desigualdade e que são necessárias grandes mudanças no sistema económico. Quem olhe para isto verá um grande potencial transformador, o ímpeto para “restaurar a saúde cultural e moral da nação” de que fala Robert Putnam no seu livro mais recente, “The Upswing”.

https://lanekenworthy.net/happiness/#whyarentamericanshappierthan

Contudo, mudar de regime é muito difícil. Mesmo que os Democratas ganhem a presidência e o controlo do Congresso, não é claro que haja muito que os una para além do repúdio a Trump. Um novo compromisso entre classes, semelhante ao que deu origem ao New Deal, depara-se hoje com a ausência de um dos interlocutores principais, os sindicatos. As instituições políticas americanas foram concebidas para preservar o status quo; com partidos e bases polarizadas e tribalizadas, este conservadorismo institucional transforma-se em paralisia. E depois temos Trump. Nos últimos anos, o presidente americano chegou a ser entendido como aquele que viria conduzir um regime obsoleto à sua cova. Porém, se há coisa que estas eleições mostram, independentemente do seu desfecho imediato, é que a aliança entre privação económica, nativismo, ressentimento racial e extremismo retórico não constitui um handicap eleitoral. Pelo contrário, pode ser o tónico de que este mesmo regime carecia para permanecer vivo. O trumpismo não acabará com a saída de Trump – e muito menos acabará o regime que o tornou possível. 

Este é o último artigo de uma série sobre as eleições e as instituições políticas dos Estados Unidos. Agradeço a Clara Vilar, Ivan Nunes e Nuno Garoupa os comentários que fizeram a versões iniciais destes artigos.

by Pedro Magalhães

Trump vs. Biden: as variáveis decisivas

Posted November 9th, 2020 at 8:51 am4 Comments

Expresso, 2/11/20

Sobre o futuro, a escola de pensamento mais sensata é a de um antigo lateral-direito do Futebol Clube do Porto: “prognósticos, só no fim do jogo”. Dito isto, o que se sabe sobre as eleições americanas de amanhã? 

1. Popularidade. Trump não é um presidente popular. É certo que a sua impopularidade é diferente da sofrida por presidentes anteriores. O eleitorado está mais tribalizado do que nunca, o que explica que os níveis de aprovação de Trump sejam tão estáveis ao longo do tempo: grande parte das pessoas tem uma opinião inamovível sobre ele, seja ela positiva ou negativa. Mas também é verdade que, desde que existem dados sobre o tema, só Jimmy Carter (1977-81) tinha valores mais baixos quando se apresentou à reeleição. Até Gerald Ford (1974-77) e George H.W. Bush (1989-93) superavam a popularidade de Trump. E o facto é que nem Carter, nem Ford, nem Bush pai foram reeleitos. 

Charles Franklin: https://twitter.com/PollsAndVotes/status/1319482449097797632/photo/1

2. Economia. Os Estados Unidos estão a passar pela sexta recessão dos últimos 40 anos. O valor atual do índice de confiança dos consumidores é o quarto mais baixo verificado às vésperas de uma eleição presidencial desde que existem dados sobre o assunto. Nos outros três casos — 1980, 1992 e 2008 — os candidatos do partido presidencial (Carter, Bush pai e McCain) perderam as eleições. É certo que, para que a economia dê azo a um castigo (ou recompensa), é preciso que os eleitores atribuam a responsabilidade ao presidente, e a excecionalidade das circunstâncias atuais pode, em parte, exonerá-lo. Ainda em Fevereiro passado, a avaliação que os americanos faziam do estado da economia era melhor do que em 2004 e 2012, quando George W. Bush e Obama (respetivamente) conquistaram um segundo mandato. Mas o mínimo que se pode dizer é que, no momento atual, a economia não vai fazer por Trump aquilo que poderia fazer se as circunstâncias fossem outras.

3. Bases de apoio. O que diziam as sondagens nacionais em 2016? No Domingo antes do voto, uma média simples apontava para que Hillary Clinton tivesse cerca de dois pontos percentuais de vantagem sobre Trump. A candidata tinha um desempenho especialmente bom entre as mulheres (superior até ao de Obama em 2012), mas piores resultados do que o presidente cessante entre os chamados “independentes” (eleitores sem simpatia partidária), entre os hispânicos e – muito especialmente – entre os eleitores brancos com baixos níveis de instrução. Essas indicações das sondagens (realizadas antes das eleições) vieram a confirmar-se integralmente nos estudos pós-eleitorais.

Ontem, uma média simples das sondagens nacionais dava sete pontos de diferença a favor de Biden. De onde vem esta vantagem acrescida? Não é claro que Biden esteja a melhorar o desempenho do Partido Democrata entre os eleitores brancos de classe trabalhadora, justamente aqueles que há quatro anos ajudaram a vitória de Trump no Michigan, no Wisconsin e na Pensilvânia. Contudo, entre os “independentes” a vantagem de Biden é desta vez clara, de acordo com quase todos os estudos. Outro aspeto é que, nas sondagens pré-eleitorais, Biden parece ter um desempenho excecional – se comparado com Hillary ou mesmo com Obama – entre os eleitores brancos com ensino superior. Aliás, se há um dado quase certo em relação às eleições da próxima terça-feira, é que a relação entre o grau de instrução e o voto se vai tornar ainda mais forte do que já foi há quatro anos.

4. A mobilização do eleitorado negro. Em 2016, para compensar as perdas sofridas entre o eleitorado branco menos instruído, Hillary precisava de ter conseguido manter uma forte participação dos negros; porém, essa participação baixou, sobretudo em estados como o Michigan e o Wisconsin, onde teria sido crucial. É muito difícil prever se os eleitores vão votar – ainda mais difícil do que prever em quem eles irão votar – e as circunstâncias da pandemia, com o recurso generalizado ao voto antecipado e por correio, só complicam as coisas. Neste aspeto, as indicações de que dispomos são ambivalentes. Se há estudos que mostram que os eleitores que se identificam com o partido Democrata estão mais entusiasmados – seja em comparação com 2016, seja em comparação com os republicanos – há outros que sugerem que as diferenças são pequenas. Os eleitores negros (e hispânicos), especialmente os mais jovens, declaram-se menos motivados para votar do que os eleitores brancos. É quase impossível que Biden consiga gerar junto do eleitorado negro a mesma mobilização que Obama. Mas conseguirá superar Hillary? Essa é uma das grandes dúvidas.

5. Os erros das sondagens. Hillary ganhou o voto popular por dois pontos, muito perto daquilo que as sondagens lhe atribuíam. E no entanto isso não foi suficiente, visto que o vencedor é determinado pelo colégio eleito estado a estado, não pelo voto nacional. Em 2016, nos 13 estados mais competitivos (em que a diferença absoluta entre Trump e Hillary acabou por ser inferior a seis pontos percentuais), a candidata democrata tinha sondagens que lhe davam vantagem em sete. Desses, ganhou apenas quatro, perdendo Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. A média das sondagens finais nesses estados dava-lhe vantagem por 1,9, por 3,4 e por 6,5 pontos, respetivamente. Trump acabaria por ganhar por 0,3 pontos no Michigan e 0,7 pontos na Pensilvânia e no Wisconsin. Essas pequenas margens foram cruciais, visto que, tal como sucede em quase todos os casos, basta ganhar por um voto para recolher todos os votos no colégio eleitoral correspondentes a esses estados.

Temos hoje uma ideia clara do que aconteceu com as sondagens. Por um lado, o trabalho de campo terminou demasiado cedo: graças aos estudos pós-eleitorais, sabemos agora que mais de 10% dos eleitores nestes estados cruciais tomaram a sua decisão só na última semana, e que Trump levou clara vantagem entre os decisores tardios. Por outro lado, sabe-se também que em muitas sondagens as amostras não tiveram devidamente em conta a sobrerrepresentação dos inquiridos com níveis de educação mais elevados. Os eleitores mais instruídos estavam não só mais predispostos a votar em Hillary, mas também mais disponíveis para responder aos inquéritos, e o resultado disso foi uma sobrestimação do voto Democrata.

Desde então, várias empresas de sondagens passaram a ponderar as amostras de acordo com o nível de instrução. Além disso, o número de sondagens aumentou: mais empresas de maior qualidade estão a trabalhar até mais tarde nos estados mais disputados. Mas, como diz o responsável de um dos melhores institutos americanos, “é possível que estejamos agora a disputar a batalha passada”. Cada eleição traz os seus problemas, e há sempre o risco de que as soluções encontradas para dificuldades antigas venham a provocar erros novos.

6. Os estados decisivos. De acordo com os resultados médios das últimas sondagens de ontem, Biden estava em vantagem sobre Trump em todos os treze estados que foram mais competitivos em 2016. Em nove casos, a diferença é de mais de três pontos percentuais. Se imaginarmos — com prudência, mas também alguma ingenuidade — que os erros cometidos em 2016 pudessem repetir-se agora, mesmo assim Biden manteria vantagem em onze estados, incluindo os temidos Michigan e Pensilvânia. Contudo, nesse cenário, a sua vantagem seria muito reduzida em vários estados. Ambas as candidaturas já recrutaram centenas de advogados preparados para contestar as eleições, e se há coisa em que Trump tem sido transparente é na sua disponibilidade para perseguir essa estratégia até às suas últimas consequências. À incerteza das sondagens junta-se assim a incerteza sobre as implicações jurídicas de resultados que não sejam inequivocamente claros.

Em suma, muitas coisas nesta eleição jogam a favor de Joe Biden, muito mais do que jogavam a favor de Hillary Clinton há quatro anos. Nestes assuntos, porém, quem tem sempre razão é o João Pinto.

by Pedro Magalhães

O futuro é dos Democratas?

Posted November 7th, 2020 at 11:19 am4 Comments

Expresso, 30/10/2020

Em 2002, um politólogo americano de origem portuguesa chamado Ruy Teixeira escreveu, em colaboração com John Judis, um livro intitulado "The Emerging Democratic Majority". A sua ideia central era que, do ponto de vista demográfico, a América estava a mudar numa direção favorável ao partido Democrata. O eleitorado estava a tornar-se mais diverso do ponto de vista étnico e cultural, e a economia gerava uma nova e vasta classe de profissionais muito qualificados. Cada geração americana tenderia a ser mais progressista que a anterior. O partido Democrata seria o beneficiário desta “maioria emergente”.

De 2002 até hoje, no entanto, o número de estados onde os republicanos controlam não só o cargo de governador mas ambas as câmaras legislativas passou de 13 para 21. Dos 3756 lugares em disputa em oito eleições para o Congresso, os republicanos ganharam cerca de metade. Em quatro eleições presidenciais, ganharam duas. É verdade que Teixeira e Judis sempre disseram que “a demografia não é o destino”, que ela não é uma inevitabilidade. Caberia aos políticos do partido Democrata transformar a “maioria emergente” numa realidade efetiva. Mas o mínimo que se pode dizer é que, até agora, não se têm saído bem. Porquê?

Em primeiro lugar, uma parte fundamental dessa “maioria emergente” não tem um peso eleitoral proporcional ao seu peso demográfico. Quase um terço dos hispânicos e dos asiáticos com mais de 18 anos não têm direito de voto, e os que têm exercem-no menos que o resto da população. A afluência dos eleitores negros às urnas bateu recordes em 2008 e 2012 (quando Obama foi candidato), mas de resto tem sido quase sempre inferior à dos brancos. Em consequência, as várias minorias de não-brancos representavam em 2016 quase 40% da população dos EUA, mas apenas 27% dos votantes. E se é verdade que a maioria deles se identifica com o partido Democrata (dois terços no caso dos hispânicos e asiáticos, mais de 80% entre os negros), a conversão dessa hegemonia em votos é muito imperfeita. Se a participação eleitoral destas minorias tivesse sido igual à dos brancos, estima-se que em 2016 os democratas teriam ganho a presidência e o Senado. Mas esse é um universo paralelo que nós não habitamos.

O segundo obstáculo à consolidação da maioria Democrata é o facto de o partido ter entretanto perdido a preferência da classe trabalhadora branca. Até à era Reagan, 60% dos brancos sem curso superior identificavam-se com o partido Democrata, ao passo que hoje são 31%. Neste segmento, que representa 44% do eleitorado, Trump teve quase 40 pontos de vantagem sobre Hillary, uma enormidade até há pouco tempo inimaginável.

O que lançou tantos operários brancos nos braços da direita? Há quem fale na economia, porque foi este grupo social quem mais foi prejudicado pela globalização, e há quem fale em “identidade”, porque é entre este grupo que há mais pessoas indignadas com os privilégios de que negros e hispânicos supostamente beneficiam (e houve uma correlação estreita entre esta ideia e o voto em Trump). Mas o afastamento dos trabalhadores brancos do partido Democrata está também ligado ao declínio dos sindicatos, que historicamente cumpriam a função de socializar, informar e mobilizar os seus membros. Em articulação com as lideranças Democratas, os sindicatos combinavam a defesa dos interesses materiais dos seus membros com posições progressistas sobre temas culturais e raciais. Como já dizia o grande Seymour Martin Lipset há mais de 60 anos, a classe operária tinha uma forte propensão para a intolerância e o autoritarismo, mas ambas as tendências eram facilmente contrariadas pela inserção no sindicalismo democrático. Ora, esse mundo acabou: em 1964, 30% dos trabalhadores brancos americanos pertenciam a um sindicato; hoje, são 10%.

Fonte: Macdonald, D., Labor Unions and White Democratic Partisanship. Polit Behav (2020). https://doi.org/10.1007/s11109-020-09624-3

Com o declínio dos sindicatos veio também um défice organizativo. Não falo da máquina eleitoral que conquistou a presidência para Obama em 2008 e 2012, mas sim da capacidade de manter uma presença organizada no terreno e na vida das pessoas entre eleições. Como assinala a politóloga Theda Skocpol, hoje em dia a maioria das organizações ligadas aos democratas são think tanks com sede em Nova Iorque e Washington, que negligenciam completamente a política local e estadual. Em contrapartida, os Republicanos constituíram uma forte base de influência local, primeiro sustentada no Tea Party (apoiado pelos biliões dos irmãos Koch) e depois aproveitando as redes da National Rifle Association, das associações de polícias e das igrejas evangélicas. Assim, em 2016, enquanto o New York Times e o Washington Post se espantavam com a desorganização da campanha de Trump, estas redes iam fazendo o seu trabalho subterrâneo, com o resultado que se viu.

Para concluir, estes fenómenos reforçam-se mutuamente. Sem uma estrutura que enquadre e mobilize as bases, perdem-se eleições locais e estaduais; perdendo-as, paga-se o preço em gerrymanderinge leis que suprimem o voto das minorias e limitam ainda mais a relevância dos sindicatos. Se Biden ganhar na próxima 3ª feira – como tudo indica – é provável que a tese da maioria democrata emergente ressuscite, como já tinha ressuscitado em 2008 e 2012. Mas a seguir a 2012 veio 2016.

by Pedro Magalhães

Salamandras

Posted October 31st, 2020 at 10:22 am4 Comments

Expresso, 23/10/2020

Numa sondagem da Gallup do ano passado nos países da OCDE, 59% dos americanos não tinham confiança na honestidade das eleições. Na Finlândia eram apenas 10%. Na Turquia, 52%. Muitos estarão a pensar que isto se deve à interferência russa nas eleições de 2016. Contudo, uma maioria consistente dos americanos já tem esta opinião pelo menos desde 2012. A América não é propriamente a Bielorrússia. O que explica, numa das democracias mais antigas do mundo, o ceticismo da maioria dos cidadãos em relação à integridade das suas eleições? Para sabermos a resposta temos de esquecer Trump e Biden por uns momentos e olhar para outro nível da política americana: os estados.

Ao contrário do que sucede em muitas democracias, onde a administração eleitoral é feita por organismos independentes ou com composições politicamente equilibradas, a Federal Election Commission americana tem poderes limitados. São os “Secretários de Estado”, escolhidos em eleições partidárias ou designados pelo governador, que controlam o recenseamento e organizam as eleições, aplicando regras aprovadas pelas câmaras dos representantes e senados estaduais. Nalguns casos, o governador, também eleito diretamente, pode vetar essas regras. Mas hoje em dia, em 36 dos 50 estados norte-americanos, o governador e as maiorias nas câmaras baixa e alta são todos do mesmo partido: Republicano em 21 casos e Democrata em 15. 

A consequência é que os partidos dominantes em cada estado aprovam e aplicam regras eleitorais de acordo com a sua conveniência. As filas intermináveis de pessoas que procuram votar antecipadamente ou no próprio dia que vemos nas notícias não acontecem só porque os eleitores estão muito entusiasmados. Acontecem também porque o número de horas e locais disponíveis para votar são estrategicamente reduzidos nas zonas onde há eleitores que tenderão a votar contra quem está no poder. E na ausência de recenseamento automático e de cartões de identificação emitidos gratuitamente, as exigências colocadas para que se possam recensear e votar acabam por depender também daquilo que mais convém a quem manda. Quanto maiores os requisitos de identificação dos eleitores, menor a participação dos mais pobres e das minorias étnicas. A tendência para o reforço dessas exigências acentuou-se nos últimos anos em estados dominados pelo partido Republicano, com o previsível impacto negativo nos resultados dos democratas.

Patricia McKnight/Milwaukee Journal Sentinel

Depois temos o desenho dos círculos eleitorais. Após cada recenseamento da população, é preciso determinar quantos representantes são eleitos em cada estado e as novas fronteiras dos círculos eleitorais que vigorarão durante a década seguinte. Na maior parte dos casos, essa tarefa cabe aos órgãos legislativos estaduais. O resultado previsível é conhecido pelo nome de gerrymanderingCom a ajuda de dados políticos e demográficos e sistemas de informação geográfica, os partidos no poder conseguem fazer com que os eleitores do partido da oposição sejam concentrados no menor número possível de círculos, ao passo que quem governa tenha maiorias, mesmo que apertadas, no maior número possível de círculos. O efeito pode ser estrondoso. Nas últimas eleições para a Câmara dos Representantes em Maryland, o partido Republicano teve 32% dos votos mas elegeu apenas 13% dos representantes. E no Wisconsin, os democratas tiveram 53% dos votos mas apenas 38% dos representantes. Para combater o fenómeno, uma minoria de estados criou comissões independentes encarregadas de redesenhar os círculos, mas nem todas elas têm uma composição politicamente paritária ou genuinamente independente. O resultado é que, de dez em dez anos, em vez de serem os eleitores a escolherem os eleitos, “são os que governam e os seus agentes políticos que escolhem os seus eleitores”.

Newspaper with illustration, "The Gerry-Mander," Salem Gazette, 2 Apr 1813. PL*305360.101.

É certo que o termo gerrymandering foi criado em 1812, em honra do governador Elbridge Gerry, que desenhou um círculo eleitoral com a forma de uma salamandra (na verdade, mais parecido com um dragão). Apesar de estarem mais limitados tecnologicamente, os políticos americanos dos séculos XIX e XX já praticavam a coisa com alguma eficácia. É também verdade que o consenso académico, até há pouco tempo, era o de que estas maquinações de uns e de outros acabavam, globalmente, por se cancelar umas às outras. Contudo, em contraste com o papel decisivo que desempenhou nos anos 60 para travar as maiores distorções, o Supremo Tribunal Federal americano tem, desde o início deste século, devolvido estas questões aos estados. O resultado, a partir do ciclo de 2010, foi a aceleração dramática das distorções na relação entre votos e mandatos, em claro desfavor dos democratas, dado disporem de controlo unificado dos órgãos de governo em menos estados. E as consequências não foram apenas para a distribuição de poder entre partidos, mas também para o processo político como um todo: nos estados onde os enviesamentos criados pelo gerrymandering são maiores, as políticas públicas acabaram também elas por se desviar de forma mais acentuada das preferências dos eleitores e a competitividade eleitoral e a qualidade dos candidatos diminuíram.

A América não é a Bielorrússia. Mas importa não sobrestimar a “normalidade” da política americana. 

by Pedro Magalhães

Duas tribos

Posted October 24th, 2020 at 4:20 pm4 Comments

Expresso, 16/10/2020

Jackson é a maior cidade e capital do estado do Mississípi. Deve o seu nome ao sétimo Presidente dos Estados Unidos e foi quase completamente destruída durante a Guerra Civil. Em 1963, Medgar Evers, ativista pelos direitos cívicos dos negros, foi lá assassinado por um membro da Ku Klux Klan, que só viria a ser condenado três décadas mais tarde.

É bordejada pelo rio Pearl. A oeste do rio, no condado de Hinds, os brancos não hispânicos constituem apenas 25% da população. O rendimento mediano dos residentes equivale a pouco mais de metade do nacional. Hillary Clinton teve aqui mais de 70% dos votos em 2016. A leste do rio ficam cidades como Pearl ou Florence, a menos de 20 minutos de carro do centro de Jackson. Cerca de 80% dos habitantes destas cidades são brancos não hispânicos. O seu rendimento mediano é aproximadamente o dobro do dos habitantes de Jackson. No condado de Renkin, onde estão Pearl e Florence, Trump teve 75% dos votos em 2016.


Jackson é um caso extremo: a área urbana mais politicamente segregada dos Estados Unidos. Mas está longe de ser caso único. Nova Orleães, Baltimore, Milwaukee, Houston ou Cleveland exibem padrões semelhantes. Estamos habituados a pensar em Estados “republicanos” ou “democratas”. Mas, como mostra um estudo recente — “Partisan Spatial Sorting in the United States”, dos economistas Ethan Kaplan, Jörg Spenkuch e Rebecca Sullivan —, passa-se algo novo desde os anos 70. A segregação política no interior dos estados está em crescimento acelerado, com áreas rurais e suburbanas povoadas por eleitores republicanos e os centros urbanos povoados por democratas. Esta segregação política está fortemente correlacionada com outros tipos de segregação: por níveis de rendimento e instrução e, especialmente, racial.


Num famoso conjunto de artigos de 2004 e num livro subsequente, o jornalista Bill Bishop e o sociólogo Robert Cushing chamaram a isto “The Big Sort”: os americanos cada vez mais escolheriam viver junto de pessoas que pensam como eles, balcanizando o país e criando comunidades que não passariam de câmaras de eco das suas próprias ideias. Um problema óbvio deste argumento é que a capacidade para escolher onde se vive é constrangida por inúmeros fatores, a começar pelo custo de vida e do imobiliário. Contudo, na medida em que esses fatores estejam correlacionados com as características sociais e políticas de diferentes áreas geográficas — como efetivamente estão —, o desfecho acaba por ser parecido. É extremamente improvável que um habitante de Pearl tenha um vizinho que vote num partido diferente do seu ou que encontre semelhante criatura no supermercado, na igreja ao domingo ou nas reuniões de pais da escola dos filhos. Passeando pelo bairro, dificilmente encontrará cartazes de candidatos de outro partido que não o seu espetados nos relvados das casas dos vizinhos. E o mesmo sucede com um habitante de Jackson. Na verdade, mesmo que não possam escolher onde vivem apenas na base de preferências políticas, mais de 40% dos americanos afirmam que seria mais difícil entenderem-se com um novo vizinho se ele fosse de um partido diferente. Contudo, não é coisa que os deva preocupar excessivamente: a possibilidade de isso suceder é cada vez menor.


A crescente segregação política dos americanos manifesta-se de outras formas. A Fox News é a fonte que mais americanos usam para obter notícias sobre política. Entre os que a mencionam como fonte principal, nove em cada dez são brancos e simpatizantes do Partido Republicano. A CNN aparece em segundo lugar. Oito em cada dez dos que a mencionam são simpatizantes do Partido Democrata. Quase 80% dos americanos afirmam que o cônjuge ou parceiro é do mesmo partido e é mais provável que digam que têm “muitos amigos” desse partido. E mesmo que não se escolham amigos, colegas de trabalho ou familiares como se escolhem canais de televisão, é sempre possível escolher aquilo de que se fala com eles: quanto mais antecipam que as pessoas que conhecem irão discordar deles politicamente, menos provável é que os americanos conversem com elas sobre política.


Mas o que significa exatamente “discordar”? À primeira vista, o que distingue democratas e republicanos são as suas opiniões muito diferentes sobre temas como a imigração, o aborto, o controlo de armas, o comércio livre, a política externa ou o papel do Estado na economia. Contudo, outra coisa que os caracteriza é simplesmente o conjunto de sentimentos negativos que nutrem uns pelos outros:“tacanhos”, “imorais” e “antipatrióticos”. De resto, no que toca às opiniões sobre os temas, a maleabilidade é muito grande. Em 2015, 55% quer de democratas quer de republicanos achavam que os acordos de comércio livre eram uma coisa boa. Depois da eleição de Trump, as percentagens passaram para, respetivamente, 67% e 36%. Em abril de 2016 havia mais republicanos do que democratas a acharem que a Rússia era uma ameaça aos Estados Unidos. Em janeiro de 2017 tudo já se tinha invertido. E o meu exemplo preferido é o da opinião dos cristãos evangélicos sobre o perfil moral dos políticos. Em 2011, apenas 30% deles concordavam com a ideia de que “um político que comete um ato imoral na vida privada pode na mesma comportar-se eticamente e cumprir os seus deveres públicos e profissionais”. Em outubro de 2016, com Trump como candidato republicano, esse valor tinha subido para uns espetaculares 72%.


Nos Estados Unidos, a simpatia partidária não é uma coleção de posições ideológicas sólidas e elaboradas. É antes uma identidade social, reforçada por sentimentos de afinidade com determinados grupos sociais, étnicos, religiosos ou de classe. É um reflexo do tipo de pessoa que julgamos ser, dos grupos a que julgamos pertencer e do antagonismo em relação àqueles a que julgamos não pertencer. Não é completamente impermeável aos factos e às experiências. Mas quando esses factos e experiências nos chegam através do circuito fechado formado pelos membros da nossa tribo, tudo fica exatamente na mesma. Sem começarmos por perceber isto, muito do que se passa na política americana — e talvez não só a americana — permanecerá um mistério inexplicável.

by Pedro Magalhães

Eleitores “brancos” e “negros”: muitas semelhanças, algumas diferenças*

Posted March 6th, 2020 at 9:11 am4 Comments

Quando se discutiu a inclusão de perguntas no Censos 2021 sobre “origem e/ou pertença étnico-racial” (terminologia “oficial” do grupo de trabalho designado para o assunto, mas não adoptada na pergunta que o GT acabou por propor), chegou-se a esta formulação:

“Portugal é hoje uma sociedade com pessoas de diversas origens. Queremos melhorar a informação sobre essa diversidade para melhor conhecer a discriminação e desigualdades na sociedade portuguesa. Qual ou quais das seguintes opções considera que melhor descreve(m) a sua pertença e/ou origem?” 

Apesar desta proposta, a decisão final do INE sobre a sua inclusão no Censos foi negativa, por se entender que se trata de “um recenseamento da população e não uma ferramenta para a sua classificação”, mas apontando para a necessidade de realização de um inquérito sobre o tema.

Estudo Eleitoral Português 2019, realizado junto de uma amostra representativa dos eleitores do Continente, não é, nem pouco mais ou menos, esse inquérito. Contudo, decidiu-se colocar a questão proposta pelo GT, numa versão simplificada (eliminando a frase “queremos melhorar a informação sobre essa diversidade para melhor conhecer a discriminação e desigualdades na sociedade portuguesa”) e agregando as opções de resposta. Eram elas  “Branca/Branco”, “Negra/Negro”, “Cigana/Cigano”, “Asiática/Asiático”, “Outra/Outro” e “Não me revejo em nenhuma destas opções”. 

A resposta a esta pergunta, como a todas as outras — dado não se tratar de uma operação oficial — era facultativa. Dos 1500 inquiridos, 1429 escolheram “Branca”, 51 “Negra”, 4 “Cigana” e 10 “Não me revejo nestas opções”. Quatro disseram não saber e outros quatro optaram por não responder. É desde logo interessante que, mesmo nesta versão altamente simplificada, sejam tão poucos os inquiridos que não se reviam nas opções de resposta ou que optaram por não responder. Mas é também fundamental notar que todos os inquiridos, tendo em conta os objetivos do estudo, têm capacidade eleitoral ativa. Ou seja, não estamos a falar de uma amostra representativa de toda a população residente em Portugal, nem sequer de toda a população adulta, mas apenas de cidadãos portugueses com 18 ou mais anos.

Dito isto, em que medida se distinguem, do ponto de vista das suas atitudes e comportamentos políticos, os eleitores que definem a sua origem ou pertença como “negra” daqueles a definem como “branca”? Há opiniões ou comportamentos mais prevalecentes junto de uns que de outros? Responder a estas questões exige cuidados especiais, dado que os primeiros — os que se definiram, em termos de pertença ou origem, como “negros” — formam uma sub-amostra de dimensões reduzidas. Assim, em todas as análises que se seguem, testou-se se a diferença de proporções ou médias, ou se a relação entre variáveis, eram estatisticamente significativas. Em todos os gráficos, quando virem um *  (asterisco) isso significa que a diferença é estatisticamente significativa a 95%. O que encontramos, então?

  1. Atitudes políticas: muitas semelhanças

Numa escala de 0 a 10, em que 0 significa a posição mais à esquerda e 10 a posição mais à direita, a posição média dos eleitores “brancos” é 4,7. Entre os eleitores “negros” é 4,8. A diferença não é estatisticamente significativa.

A média pode ocultar alguns aspetos da distribuição, pelo que vale a pena observar o gráfico abaixo, que mostra como estes dois grupos se distribuem nas respostas a esta questão. Entre os “negros”, há menos posições extremas e mais posições no centro-esquerda que entre os brancos, mas as diferenças são pouco expressivas.

Passando para temas substantivos, a auto-definição dos eleitores como “brancos” ou “negros” também não ajuda a distingui-los do ponto de vista da sua posição sobre a desigualdade e a redistribuição de rendimentos: quase nove em cada dez “brancos” ou “negros” concordam com a ideia de que “o Governo devia tomar medidas para reduzir diferenças nos níveis de rendimento”.

E o mesmo sucede com o interesse pela política: aproximadamente um em cada três “brancos” ou “negros” dizem-se “muito” ou “razoavelmente” interessados na política. Também é semelhante a prevalência da percepção de que “compreendem os assuntos políticos mais importantes do país” (42% dos ”brancos” concordam, 47% dos “negros”). Da mesma forma, as ideias de que “certas práticas de corrupção se encontram difundidas entre os políticos portugueses”, de que “a maioria dos políticos não se interessa pelo povo”, de que “os políticos são o principal problema de Portugal” ou de que “a maioria dos políticos só se preocupa com os interesses dos ricos e dos poderosos” recebem a concordância de proporções elevadas dos membros dos dois grupos, sem que, uma vez mais, as diferenças tenham significância estatística.

2. Comportamento eleitoral

Questionados sobre se votaram e, em caso afirmativo, em que partido, há uma proporção muito semelhante de “brancos” e “negros” que dizem ter votado em partidos aqui definidos como de "esquerda" (PS, BE, CDU, PAN ou Livre). Mas algo diferente se passa no que toca à opção por um partido de "direita" (PSD, CDS, Chega, IL ou  Aliança). Entre os eleitores “negros”, a opção de voto por um partido de direita é residual, muito inferior ao que se encontra entre os “brancos”. Como podem as proporções de “brancos” e “negros” que votam à esquerda serem tão semelhantes e as proporções de “brancos” e “negros” que votam à direita tão diferentes? Isso sucede porque uma terceira opção, a abstenção, se manifesta também de forma diferente:

Um teste de χ2 revela que a relação entre a pertença ou origem e o comportamento de voto é estatisticamente significativa: eleitores “negros” e “brancos” não votam da mesma forma.

É intrigante a diferença no que toca à abstenção. Como vimos antes, eleitores “negros” e “brancos” exibem níveis semelhantes de interesse pela política e de concordância com a ideia de que “compreendem os assuntos políticos”. Se uns votam mais do que os outros, a explicação não deverá estar no nível de envolvimento político “subjetivo”. Será preciso analisar estes dados com outras ferramentas para determinar se as diferenças de participação eleitoral que aqui aparecem ligadas a “pertença ou origem” não se deverão a níveis diferentes de recursos educacionais ou outros, a diferentes incentivos para o voto ligados ao círculo eleitoral onde votam ou a outro factor qualquer. Nos Estados Unidos, por exemplo, sabe-se que, para além de problemas relacionados com os obstáculos ao recenseamento, os eleitores “negros”, especialmente os menos interessados pela política, tendem a votar mais quando lhes são dirigidos maiores esforços de mobilização eleitoral ou quanto maior for o número de candidatos que identifiquem como tendo a mesma pertença ou origem. Outra hipótese é que talvez os temas que mais interessam a “brancos” e “negros” não sejam iguais e que a menor relevância dos segundos no discurso partidário e no debate político torne a oferta política menos atraente para os eleitores “negros”. Mas tudo isto está por estudar em Portugal. 

3. "Minorias" e imigração

Uma possível surpresa: questionados sobre se a vontade da maioria deve prevalecer sobre os direitos das minorias, ou se as minorias se devem “adaptar aos costumes e tradições de Portugal”, não há diferenças significativas na prevalência destas opiniões entre “brancos” e “negros”: 

Por outras palavras, a utilização de termos como “minorias” ou “direitos das minorias,” pelo menos nestas formulações, não suscita reacções significativamente diferentes entre “brancos” e “negros”.

Onde as diferenças já aparecem de forma mais marcada é nas atitudes em relação à imigração. É certo que são poucos os “brancos” ou os “negros” que acham que “a cultura portuguesa é prejudicada pelos imigrantes”:

Mas a minoria daqueles que relacionam a imigração com a criminalidade é ainda mais minoritária entre os “negros” que entre os “brancos”:

E ao passo que a concordância com a ideia de que “os imigrantes são bons para a economia portuguesa” é quase unânime entre os “negros”, o mesmo não sucede entre os “brancos”:

Finalmente, os eleitores portugueses “brancos” e “negros” tendem a partilhar ideias diferentes sobre o que é “importante para ser verdadeiramente português”. “Ter nascido em Portugal”, “ter antepassados portugueses” ou mesmo “seguir os costumes e as tradições portuguesas” são significativamente mais mencionados como “muito importantes” por “brancos” do que por “negros”. Onde a diferença entre uns e outros desaparece é na importância atribuída ao domínio da língua.

Falta saber muita coisa, não apenas sobre estes grupos — os eleitores que definem a sua pertença ou origem desta forma — mas também sobre o resto da população residente em Portugal, “branca” ou “negra”, que não tem direito de voto, e que pode ser muito diferente de muitos pontos de vista da população que é representada aqui.

Contudo, o retrato que fica desta breve análise resume-se rapidamente: irrelevância desta categorização para explicar um grande número de atitudes em relação à política, incluindo posicionamento ideológico, interesse e eficácia políticas e atitudes em relação à classe política; mas alguma relevância para explicar seja o comportamento eleitoral sejam atitudes em relação à imigração e à concepção do que é “ser-se português”. Tudo isto, claro, está pendente de análises mais aprofundadas, que a partir de agora serão possíveis com os dados ao nosso dispor.

*Agradeço os comentários de Ana Filipa Madeira, Jorge Vala, Mariana Miranda e Rui Costa Lopes. Análises, interpretações e possíveis erros são da minha inteira responsabilidade.

by Pedro Magalhães

O que pensam os que votaram no Chega?

Posted February 22nd, 2020 at 6:54 pm4 Comments

Num artigo publicado no Observador, na sequência de algumas entrevistas com fundadores e quadros e monitorização de redes sociais frequentadas por simpatizantes do partido, Riccardo Marchi lançou um olhar exploratório sobre o Chega. Definindo o partido como trazendo uma "proposta populista de nova direita radical", Marchi detectou alguns elementos distintivos no discurso ideológico do partido e da cultura política dos seus líderes:

  • "Populismo" ("a voz do povo atraiçoado pela elite política do sistema capturada pelo politicamente correcto"), mas sem clara predileção pela democracia directa em detrimento da democracia representativa;
  • "Autoritarismo" ("Lei e Ordem" e agenda legalista e securitária), mas sem ataque directo à democracia liberal;
  • "Nacionalismo cívico", mas com conotações jacobinas ("assimilação das minorias no corpo social homogéneo") e defesa de "políticas mais restritivas de controle e selecção dos migrantes em função das necessidades económicas do País".

Marchi assinala também que "não há sinais consistentes de rejeição da qualificação de português para as minorias étnicas, nomeadamente as afrodescendentes" — apesar de declarações recentes de André Ventura, posteriores ao artigo de Marchi, lançarem dúvidas sobre esse diagnóstico — e que, noutros temas, o programa do Chega "não reflecte uma homogeneidade ideológica dos quadros, entre os quais, pelo contrário, existem sensibilidades diferentes, algumas mais outras menos flexíveis quanto ao liberalismo económico radical".

O Estudo Eleitoral Português de 2019, coordenado por Marina Costa Lobo e agora disponível, permite, no mesmo estilo exploratório, perceber em que medida aqueles que votaram no Chega se aproximam, nas suas opiniões e atitudes, destes elementos que Marchi aponta como sendo distintivos do discurso do partido. "Exploratório" por duas razões. Primeiro, os instrumentos dos inquéritos — perguntas e respectivas opções de resposta — são sempre rudimentares e simplificadores como formas de medir de atitudes e opiniões. Segundo, apenas 0,7% dos eleitores votaram no Chega nas eleições de 2019. O grau de incerteza em torno de qualquer estimativa que se possa fazer sobre esta parcela da população na base de uma amostra de um inquérito é enorme (pouco mais de 1% dos inquiridos afirmaram ter votado no Chega). Em vários momentos, assinalarei quando essa incerteza impede completamente que se identifique qualquer particularidade do votante no Chega.

Populismo

Uma definição possível de "populismo" é a de que consiste numa ideologia que "concebe a sociedade como estando dividida em dois grupos homogéneos e antagónicos: 'o povo puro' e 'a elite corrupta', e defende que a política deve ser uma expressão da vontade geral do povo" (Mudde 2004; Mudde and Rovira Kaltwasser 2017). No gráfico abaixo, agrupamos os eleitores em três grupos: votantes no Chega; votantes noutros partidos; e abstencionistas. Mostra-se a percentagem de eleitores, dentro de cada um destes grupos, que consideram que práticas de corrupção se encontram "muito difundidas" entre os políticos portugueses. Quando olhamos para os resultados, ficam poucas dúvidas de que, entre os que dizem ter votado no Chega em Outubro, a percepção de que "elite política" é na sua generalidade "corrupta" é claramente prevalecente, e parece seguro que, mesmo com os cuidados que se impõem na análise de uma subamostra tão pequena, é-o de forma mais acentuada do que entre qualquer outro grupo de eleitores.

Outras questões do inquérito geram distribuições semelhantes: a percepção de que "os políticos são o principal problema de Portugal", de que "a maioria dos políticos só se preocupa com os interesses dos ricos e dos poderosos" ou de que "a maioria dos políticos não se interessa pelo povo". Note-se que, em duas das questões — as relacionadas com a percepção de desinteresse dos políticos em relação ao "cidadão comum" — a concordância da população em geral com estas ideias é ela própria tão difundida que o eleitorado do Chega em 2019 mal se distingue de forma significativa, pelo menos em comparação com os abstencionistas.

Noutras questões relacionadas com o ideário populista, a distintividade do eleitorado do Chega não aparece. Por exemplo, não há uma concordância especialmente forte com a ideia de que "a vontade da maioria deve prevalecer sobre os direitos das minorias". É curiosamente entre os abstencionistas que esta ideia mais prevalece. Talvez a questão seja demasiado abstracta; talvez esta ideia não tenha sido articulada no discurso do partido, como o próprio Marchi assinalava; e talvez o eleitor do Chega se sinta, ele próprio, pelo menos para já, parte de uma "minoria", pelo menos política.

Autoritarismo

Questionados sobre com que frase mais tendem a concordar — "Devemos manter a lei e a ordem" ou "devemos defender as liberdades cívicas" — os portugueses inclinam-se um pouco mais para a primeira. E isso é assim para os eleitores do Chega mais do que para quaisquer outros.

Marchi defende também que, nas entrevistas com quadros do partido, não emerge um ataque em relação à democracia liberal. Não temos, neste inquérito, os instrumentos necessários para medir a adesão dos eleitores à democracia liberal enquanto regime ou conjunto de princípios. Contudo, uma das questões colocadas no inquérito foi a de saber até que ponto se concordava com a ideia de que "Ter um líder forte no governo é bom para Portugal mesmo que esse líder contorne as regras para fazer as coisas avançarem". Esse "contornar as regras" para permitir o exercício da autoridade de um líder que "faz avançar as coisas" sugere uma secundarização da componente "liberal" do regime. Como vemos abaixo, essa ideia parece prevalecer mais entre os que dizem ter votado no Chega do que entre os restantes grupos (apesar de, como já sucede noutros indicadores, a concordância com esta ideia entre os restantes eleitores ser ela própria — perturbadoramente — alta).

Nacionalismo

Algumas das opiniões dos eleitores do Chega sobre o tema "imigração" poderão, à primeira vista, surpreender. Aqui vão elas:

Prevalece a concordância com a ideia de que os "imigrantes são bons para a economia", ao passo que a ideia de que a "cultura portuguesa" é "prejudicada" por eles é partilhada por uma pequena minoria. Os eleitores do Chega não desalinham dos restantes. Mesmo quando se invoca uma combinação particularmente incendiária noutras paragens — "imigração" + "crime" — os eleitores do Chega não reagem de forma diferente dos restantes eleitores.

Os eleitores do Chega são, contudo, assimilacionistas, não pluralistas: as minorias devem "adaptar-se aos costumes e tradições de Portugal". Dito isto, o assimilacionismo também tende a ser dominante entre os eleitores portugueses...

E em contraste com aquilo que Marchi encontra nos quadros do partido, não é evidente que o nacionalismo dos eleitores do Chega seja "cívico". Questionados sobre aquilo que é importante para se ser "verdadeiramente português", apesar de o domínio da língua ser "muito importante" — como é para todos os restantes grupos — a componente "étnica" — ter "antepassados portugueses" — é mais destacada do que entre os restantes grupos. Por outras palavras, isto é o contrário do "nacionalismo cívico".

Tudo isto é, volto a assinalar, meramente exploratório. Este inquérito não foi concebido propositadamente para estudar este perfil de eleitor. E o peso eleitoral do Chega em 2019 foi, apesar da atenção desproporcional que suscita — e de que este post é só mais um exemplo — muito reduzido, o que aumenta muito a incerteza das comparações: nalguns casos, a sub-amostra de eleitores do Chega não é suficientemente grande para que a relação encontrada entre votos e atitudes se possa dizer existir com segurança entre a população. Mas o perfil — ainda hipotético — de quem votou no Chega em Outubro pode ser traçado brevemente: fortemente "anti-políticos", mas (ainda) sem um projecto de imposição da "vontade da maioria"; tendencialmente autoritários, mas possivelmente pouco mais autoritários do que o eleitor português médio já é; os efeitos alegadamente negativos da imigração não são tema (ainda?), mas o modelo de integração é assimilacionista e mais baseado do que entre outros eleitores numa concepção étnica de nação.

by Pedro Magalhães

O eleitorado do Bloco e a Europa

Posted March 27th, 2017 at 11:05 am4 Comments

O inquérito pós-eleitoral de 2015 permite dizer alguma coisa sobre como os eleitorados dos diferentes partidos olham (ou olhavam nessa altura) para a Europa. De um dos lados da questão, é simples: sabemos quem disse ter votado neste ou naquele partido. Do outro lado é um pouco mais complicado: não tivemos no inquérito uma pergunta sobre se Portugal deveria ou não sair do Euro. Mas temos duas questões relacionadas com o tema:

  • P2 – Até que ponto acha que as seguintes instituições e situações são responsáveis pela situação da economia nos últimos anos? (numa escala que ia de "nada responsáveis" a "extremamente responsáveis", e incluindo "A União Europeia" e "A pertença ao Euro".
  • P3 - A propósito da União Europeia, algumas pessoas acham que a unificação da Europa devia ir mais longe. Outras pessoas acham que já foi longe de mais. Qual a sua posição relativamente a este assunto, numa escala de 0 a 10 em que 0 significa que já foi longe de mais e 10 que devia ir mais longe?
Os gráficos abaixo mostram como se posicionaram os diferentes eleitorados perante estas questões (as linhas de erro representam o intervalo de confiança a 95% para cada estimativa): responsabilidade Unificação No toca à atribuição de responsabilidades pela situação da economia, é fácil ver que a principal diferença — e mesmo assim não muito expressiva — é entre os eleitores da PaF e os eleitores dos partidos de esquerda: os primeiros estiveram menos inclinados a "culpar" o Euro ou (especialmente) a União Europeia pela situação da economia do que os segundos. Também é fácil ver que a "União Europeia" como instituição foi mais responsabilizada do que a pertença ao Euro propriamente dita. Já na atitude "genérica" em relação ao aprofundamento da União, as diferenças entre os eleitorados são reduzidas. O eleitorado da CDU algo mais inclinado para o "já foi longe demais" do que os restantes, mas a diferença não é estatisticamente significativa, dado que todos mostram semelhante ligeira inclinação (abaixo do ponto intermédio da escala). Em suma: o eleitorado do BE teve muita gente que "culpou" o Euro pela economia? Sim. Mas sem que isso o diferencie de forma nítida do eleitorado, por exemplo, do PS; vendo-o como "menos culpado" do que União Europeia como um todo; e sem distinção clara em relação aos restantes eleitorados no que toca à questão geral sobre se a "unificação" já foi longe demais ou deveria ir mais longe.

by Pedro Magalhães