Duas tribos
Posted October 24th, 2020 at 4:20 pmNo Comments Yet
Jackson é a maior cidade e capital do estado do Mississípi. Deve o seu nome ao sétimo Presidente dos Estados Unidos e foi quase completamente destruída durante a Guerra Civil. Em 1963, Medgar Evers, ativista pelos direitos cívicos dos negros, foi lá assassinado por um membro da Ku Klux Klan, que só viria a ser condenado três décadas mais tarde.
É bordejada pelo rio Pearl. A oeste do rio, no condado de Hinds, os brancos não hispânicos constituem apenas 25% da população. O rendimento mediano dos residentes equivale a pouco mais de metade do nacional. Hillary Clinton teve aqui mais de 70% dos votos em 2016. A leste do rio ficam cidades como Pearl ou Florence, a menos de 20 minutos de carro do centro de Jackson. Cerca de 80% dos habitantes destas cidades são brancos não hispânicos. O seu rendimento mediano é aproximadamente o dobro do dos habitantes de Jackson. No condado de Renkin, onde estão Pearl e Florence, Trump teve 75% dos votos em 2016.
Jackson é um caso extremo: a área urbana mais politicamente segregada dos Estados Unidos. Mas está longe de ser caso único. Nova Orleães, Baltimore, Milwaukee, Houston ou Cleveland exibem padrões semelhantes. Estamos habituados a pensar em Estados “republicanos” ou “democratas”. Mas, como mostra um estudo recente — “Partisan Spatial Sorting in the United States”, dos economistas Ethan Kaplan, Jörg Spenkuch e Rebecca Sullivan —, passa-se algo novo desde os anos 70. A segregação política no interior dos estados está em crescimento acelerado, com áreas rurais e suburbanas povoadas por eleitores republicanos e os centros urbanos povoados por democratas. Esta segregação política está fortemente correlacionada com outros tipos de segregação: por níveis de rendimento e instrução e, especialmente, racial.
Num famoso conjunto de artigos de 2004 e num livro subsequente, o jornalista Bill Bishop e o sociólogo Robert Cushing chamaram a isto “The Big Sort”: os americanos cada vez mais escolheriam viver junto de pessoas que pensam como eles, balcanizando o país e criando comunidades que não passariam de câmaras de eco das suas próprias ideias. Um problema óbvio deste argumento é que a capacidade para escolher onde se vive é constrangida por inúmeros fatores, a começar pelo custo de vida e do imobiliário. Contudo, na medida em que esses fatores estejam correlacionados com as características sociais e políticas de diferentes áreas geográficas — como efetivamente estão —, o desfecho acaba por ser parecido. É extremamente improvável que um habitante de Pearl tenha um vizinho que vote num partido diferente do seu ou que encontre semelhante criatura no supermercado, na igreja ao domingo ou nas reuniões de pais da escola dos filhos. Passeando pelo bairro, dificilmente encontrará cartazes de candidatos de outro partido que não o seu espetados nos relvados das casas dos vizinhos. E o mesmo sucede com um habitante de Jackson. Na verdade, mesmo que não possam escolher onde vivem apenas na base de preferências políticas, mais de 40% dos americanos afirmam que seria mais difícil entenderem-se com um novo vizinho se ele fosse de um partido diferente. Contudo, não é coisa que os deva preocupar excessivamente: a possibilidade de isso suceder é cada vez menor.
A crescente segregação política dos americanos manifesta-se de outras formas. A Fox News é a fonte que mais americanos usam para obter notícias sobre política. Entre os que a mencionam como fonte principal, nove em cada dez são brancos e simpatizantes do Partido Republicano. A CNN aparece em segundo lugar. Oito em cada dez dos que a mencionam são simpatizantes do Partido Democrata. Quase 80% dos americanos afirmam que o cônjuge ou parceiro é do mesmo partido e é mais provável que digam que têm “muitos amigos” desse partido. E mesmo que não se escolham amigos, colegas de trabalho ou familiares como se escolhem canais de televisão, é sempre possível escolher aquilo de que se fala com eles: quanto mais antecipam que as pessoas que conhecem irão discordar deles politicamente, menos provável é que os americanos conversem com elas sobre política.
Mas o que significa exatamente “discordar”? À primeira vista, o que distingue democratas e republicanos são as suas opiniões muito diferentes sobre temas como a imigração, o aborto, o controlo de armas, o comércio livre, a política externa ou o papel do Estado na economia. Contudo, outra coisa que os caracteriza é simplesmente o conjunto de sentimentos negativos que nutrem uns pelos outros:“tacanhos”, “imorais” e “antipatrióticos”. De resto, no que toca às opiniões sobre os temas, a maleabilidade é muito grande. Em 2015, 55% quer de democratas quer de republicanos achavam que os acordos de comércio livre eram uma coisa boa. Depois da eleição de Trump, as percentagens passaram para, respetivamente, 67% e 36%. Em abril de 2016 havia mais republicanos do que democratas a acharem que a Rússia era uma ameaça aos Estados Unidos. Em janeiro de 2017 tudo já se tinha invertido. E o meu exemplo preferido é o da opinião dos cristãos evangélicos sobre o perfil moral dos políticos. Em 2011, apenas 30% deles concordavam com a ideia de que “um político que comete um ato imoral na vida privada pode na mesma comportar-se eticamente e cumprir os seus deveres públicos e profissionais”. Em outubro de 2016, com Trump como candidato republicano, esse valor tinha subido para uns espetaculares 72%.
Nos Estados Unidos, a simpatia partidária não é uma coleção de posições ideológicas sólidas e elaboradas. É antes uma identidade social, reforçada por sentimentos de afinidade com determinados grupos sociais, étnicos, religiosos ou de classe. É um reflexo do tipo de pessoa que julgamos ser, dos grupos a que julgamos pertencer e do antagonismo em relação àqueles a que julgamos não pertencer. Não é completamente impermeável aos factos e às experiências. Mas quando esses factos e experiências nos chegam através do circuito fechado formado pelos membros da nossa tribo, tudo fica exatamente na mesma. Sem começarmos por perceber isto, muito do que se passa na política americana — e talvez não só a americana — permanecerá um mistério inexplicável.
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