Estabilidade governativa
Posted October 22nd, 2015 at 5:02 pmNo Comments Yet
Têm sido apresentado muitos argumentos sobre a conveniência desta ou daquela solução governativa. São de três tipos. O primeiro toca questões de “legitimidade”. É legítimo que o governo seja liderado por um partido que tem menos deputados que outro no parlamento? É legítimo um governo de direita quando a maioria no parlamento é de esquerda? O segundo toca questões de preferências sobre políticas e suas consequências. Preferimos que o país seja governado assim ou assado, com estas ou aquelas presumíveis consequências? O terceiro toca questões de “estabilidade”. Que solução garante mais estabilidade governativa?
Queria falar apenas sobre este terceiro ponto. Há uma bibliografia enorme e bastante sofisticada sobre isto: que características de governos e de sistemas políticos estão mais associadas a governos estáveis, e quais fazem com que um governo tenha maiores riscos de cair antecipadamente? Muita dessa bibliografia não se nos aplica: é sobre a maneira como os primeiros ministros marcam eleições estrategicamente, mas por aqui os PM’s não têm esse poder. Quanto a outros factores, especialmente desde este paper de King e colegas (1990), julga-se saber que:
1. Governos maioritários duram mais tempo que governos minoritários.
2. Quanto maior o peso de partidos extremistas num sistema partidário, menos tempo duram os governos.
3. Quanto mais fragmentado o parlamento, menos tempo duram os governos.
4. Se não tiverem de ser sujeitos a investidura — à necessidade de aprovação do programa por maioria absoluta — os governos duram mais tempo (presumivelmente porque há menos que caem nesse momento, o que não quer dizer que os que sobrevivem sob um sistema de investidura não sejam até mais duráveis).
A referência mais importante que se segue é provavelmente Diermeier e Stevenson (1999), que introduzem, entre outras coisas, uma distinção entre dois tipos de risco a que qualquer governo está sujeito: o de cair devido a uma dissolução do parlamento e convocação de eleições e o de ser substituído sem eleições. A mensagem principal é que os processos que proporcionam um tipo de queda de um governo não são exactamente os mesmos que proporcionam o outro e, substantivamente, para além de se confirmar o efeito importante que o carácter maioritário ou minoritário dos governos tem nas suas chances de sobrevivência, Diermeier e Stevenson detectam que a diversidade interna das coligações do ponto de vista ideológico é um factor que diminui o seu tempo de vida expectável, favorecendo, neste caso, a sua queda através de sua substituição sem eleições.
Mais recentemente, há uma referência que beneficia muito do caminho trilhado pelos textos anteriores, Schleiter e Morgan-Jones (2009), que mostram que:
1. O risco de um governo minoritário cair, seja por dissolução seja por substituição, é cerca de 2 vezes superior ao de um governo maioritário.
2. Governos monopartidários, em democracias mais antigas, e onde está presente o partido do eleitor mediano estão sujeitos a um menor risco de serem substituídos por outros sem eleições.
Outro trabalho, de Saalfeld (2009), sintetiza muitas das conclusões anteriores. Finalmente, este vosso criado e o Jorge Fernandes mostramos, num artigo acabadinho de sair, e entre outras coisas, que muitas destas conclusões se continuam a aplicar quando olhamos exclusivamente para regimes semi-presidenciais, que presidentes com poder de dissolução discricionário aumentam o risco de governos caírem por dissolução (daaah) e que presidentes com poder de demissão discricionário aumentam o risco de um governo ser substituído, sem eleições, por outro liderado por um partido diferente.
Assim, que lições úteis podemos retirar da literatura para a nossa situação concreta?
- Que apesar do facto de não termos investidura facilitar a formação e sobrevivência de um governo, governos minoritários estão sujeitos a um risco maior de terminarem antes do tempo que governos maioritários.
- Que governos onde não esteja presente o partido mediano estão sempre sujeitos a um risco maior de terminarem antes do tempo. Traduzindo, em Portugal, isto milita contra a estabilidade de um governo minoritário onde não esteja o PS. Miguel Galvão Teles, com a sabedoria de quem não precisa de estatísticas, chamava a atenção para o problema dos “governos minoritários descentrados”, aqueles que enfrentam maiorias absolutas ou à sua direita ou à sua esquerda (este último o problema de um governo PSD/CDS nas actuais circunstâncias).
- Mas governos compostos por uma coligação onde estejam partidos muito distanciados ideologicamente estão também sujeitos a um maior risco de caírem antes de tempo. Em Portugal, o posicionamento esquerda-direita dos partidos tal como medido através dos seus programas partidários, retirado do Manifesto Projecto Database), mostra em 2011 uma crescente polarização ideológica no sistema, e há boas razões para crer que tenha aumentado. Mesmo que as coisas não tenham mudado muito, PSD e CDS estarão presumivelmente próximos um do outro, PS e PSD menos, CDS/PSD/PS aumenta ainda mais a distância entre os potenciais parceiros e PS/PCP/BE mais ainda.
Em suma, a situação eleitoral criada a 4 de Outubro é inimiga da estabilidade governativa em quase todas as soluções possíveis que consigo imaginar. Se tapamos um lado do corpo com a manta (governo coeso PSD/CDS) destapamos outro lado (minoritário e sem o partido pivotal). Se puxamos para tapar outra parte (um governo majoritário PS/BE/PCP) destapamos outra (três partidos ideologicamente distantes num mesmo governo). Se o tornamos menos diverso ideologicamente (PS sozinho) destapamos outra parte (minoritário, com parlamento mais fragmentado e polarizado do que no passado recente). Etc.
Reforço que nada disto tem a ver com a conveniência ou não da adopção destas ou daquelas políticas por parte deste ou aquele governo (isso são contas muito importantes mas de outro rosário) nem com questões de “legitimidade” (eu diria que a legitimidade resulta fundamentalmente do respeito escrupuloso pelos procedimentos, mas há quem tenha outras opiniões). Nem sequer pressuponho que a estabilidade seja o valor único ou sequer principal que deve contar. Mas se queremos falar de estabilidade, há investigação, com conclusões sólidas e, diria, bastante previsíveis e lógicas. Elas sugerem, por diferentes razões, que o caminho para uma qualquer solução de governo que possa emergir do processo actual em Portugal e que não comporte riscos conhecidos e grandes para a estabilidade governativa é apertadíssimo, para não dizer inexistente. C’est la vie.
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