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Pedro Magalhães

O regime de Ronald Reagan

Expresso, 6/10/2020

No momento em que escrevo, o vencedor das eleições presidenciais americanas e a composição das duas câmaras do Congresso ainda não são conhecidos. Mas esses resultados já não eram muito relevantes para os três artigos anteriores desta série. Ganhe quem ganhar as eleições americanas de 2020, isso não muda a polarização e tribalização do eleitorado americanoo arcaísmo e a disfuncionalidade das instituições eleitorais do país ou as debilidades organizativas do partido Democrata. E acho que também não vai alterar aquilo que se segue.

Nos últimos 40 anos, os Estados Unidos tiveram seis presidentes diferentes, 24 anos de governação republicana, 16 democrata e quase todas as combinações possíveis de controlo das duas câmaras do Congresso. De um certo ponto de vista, no entanto, tiveram um único regime. Chamemos-lhe, para simplificar, o regime de Ronald Reagan. O historiador e cientista político Stephen Skowronek explica que, tal como Lincoln e Roosevelt, Reagan foi um presidente “reconstrutivo”, que foi capaz de inaugurar uma nova agenda política, baseada em novas ideias e numa nova coligação de interesses. O regime assim criado a partir dos destroços do New Deal foi o da diminuição da regulação estatal da economia, da erradicação dos sindicatos como forma de organização da esmagadora maioria dos trabalhadores, do aumento do poder dos grandes acionistas e das administrações das empresas, da manutenção do salário mínimo a níveis baixos, do crescimento exponencial do sector financeiro, da redução da progressividade dos impostos e da contenção dos gastos sociais.

Os presidentes seguintes ou não quiseram (Bush pai e especialmente filho), ou não puderam (Clinton e Obama) mudar este regime. Clinton desistiu: “The era of big government is over”, declarou em 1996, depois de ter falhado a reforma do sistema de saúde, dado prioridade à redução do défice e aprovado uma reforma conservadora da segurança social. Obama, que chegou ao poder no meio da maior crise económica desde a Grande Depressão e com duas guerras em curso no Médio Oriente, baseou a sua reforma do sistema de saúde no plano de um governador republicano (Romney) e enfrentou um Congresso crescentemente hostil, com o qual procurou, durante muito tempo, “negociar”. Por seu lado, Trump disse muitas coisas – umas a favor e outras contra esta ortodoxia – mas era certamente o candidato de quem menos se podia esperar que mudasse algo de fundamental na ordem económica prevalecente.

O regime de Reagan deu aos Estados Unidos a vitória na Guerra Fria, enquanto mantinha enormes níveis de prosperidade. Entre todos os países da OCDE, o rendimento disponível de uma família média americana, ajustado para o poder de compra e depois de impostos, é o mais alto. Contudo, o reaganismo trouxe também outras coisas. Nos últimos 40 anos, o rendimento dos 5% mais ricos aumentou continuamente, no que representa o maior crescimento de qualquer país desenvolvido, ao mesmo tempo que o rendimento dos restantes 95% da população (que antes acompanhava o crescimento do PIB per capita e da produtividade) estagnou. Este aumento da desigualdade não foi compensado por mobilidade social significativa. Pelo contrário: em comparação com a geração dos seus pais, foram menos os americanos nascidos nos anos 70 e 80 do século passado que conseguiram ascender socialmente, e foram mais os que tiveram percursos descendentes. A esperança de vida à nascença de um americano é hoje a mais baixa, e a mortalidade infantil a mais alta, entre as democracias ricas da OCDE; e a disparidade entre americanos ricos e pobres em relação a estes indicadores não para de aumentar. É certo que algumas destas tendências já vinham de trás, fruto de mudanças na estrutura económica tanto nacional como mundial. Mas, quando se comparam os Estados Unidos com os restantes países ricos do Ocidente, é fácil ver que o reaganismo facilitou e reforçou tudo aquilo que não criou ele próprio.

Nos inquéritos à população dos EUA, os níveis de satisfação com “a maneira como as coisas vão hoje no país” ou a perceção de que o país vai “na direção certa” encontram-se estagnados há quase 20 anos a níveis baixos. Os norte-americanos estão menos satisfeitos com a vida e sentem-se menos felizes do que antes – menos do que em grande parte das democracias desenvolvidas, e muito menos do que o nível de prosperidade do país faria esperarQuase dois em cada três dizem que há demasiada desigualdade e que são necessárias grandes mudanças no sistema económico. Quem olhe para isto verá um grande potencial transformador, o ímpeto para “restaurar a saúde cultural e moral da nação” de que fala Robert Putnam no seu livro mais recente, “The Upswing”.

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Contudo, mudar de regime é muito difícil. Mesmo que os Democratas ganhem a presidência e o controlo do Congresso, não é claro que haja muito que os una para além do repúdio a Trump. Um novo compromisso entre classes, semelhante ao que deu origem ao New Deal, depara-se hoje com a ausência de um dos interlocutores principais, os sindicatos. As instituições políticas americanas foram concebidas para preservar o status quo; com partidos e bases polarizadas e tribalizadas, este conservadorismo institucional transforma-se em paralisia. E depois temos Trump. Nos últimos anos, o presidente americano chegou a ser entendido como aquele que viria conduzir um regime obsoleto à sua cova. Porém, se há coisa que estas eleições mostram, independentemente do seu desfecho imediato, é que a aliança entre privação económica, nativismo, ressentimento racial e extremismo retórico não constitui um handicap eleitoral. Pelo contrário, pode ser o tónico de que este mesmo regime carecia para permanecer vivo. O trumpismo não acabará com a saída de Trump – e muito menos acabará o regime que o tornou possível. 

Este é o último artigo de uma série sobre as eleições e as instituições políticas dos Estados Unidos. Agradeço a Clara Vilar, Ivan Nunes e Nuno Garoupa os comentários que fizeram a versões iniciais destes artigos.

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