
Salamandras
Posted October 31st, 2020 at 10:22 amNo Comments Yet
Numa sondagem da Gallup do ano passado nos países da OCDE, 59% dos americanos não tinham confiança na honestidade das eleições. Na Finlândia eram apenas 10%. Na Turquia, 52%. Muitos estarão a pensar que isto se deve à interferência russa nas eleições de 2016. Contudo, uma maioria consistente dos americanos já tem esta opinião pelo menos desde 2012. A América não é propriamente a Bielorrússia. O que explica, numa das democracias mais antigas do mundo, o ceticismo da maioria dos cidadãos em relação à integridade das suas eleições? Para sabermos a resposta temos de esquecer Trump e Biden por uns momentos e olhar para outro nível da política americana: os estados.

Ao contrário do que sucede em muitas democracias, onde a administração eleitoral é feita por organismos independentes ou com composições politicamente equilibradas, a Federal Election Commission americana tem poderes limitados. São os “Secretários de Estado”, escolhidos em eleições partidárias ou designados pelo governador, que controlam o recenseamento e organizam as eleições, aplicando regras aprovadas pelas câmaras dos representantes e senados estaduais. Nalguns casos, o governador, também eleito diretamente, pode vetar essas regras. Mas hoje em dia, em 36 dos 50 estados norte-americanos, o governador e as maiorias nas câmaras baixa e alta são todos do mesmo partido: Republicano em 21 casos e Democrata em 15.
A consequência é que os partidos dominantes em cada estado aprovam e aplicam regras eleitorais de acordo com a sua conveniência. As filas intermináveis de pessoas que procuram votar antecipadamente ou no próprio dia que vemos nas notícias não acontecem só porque os eleitores estão muito entusiasmados. Acontecem também porque o número de horas e locais disponíveis para votar são estrategicamente reduzidos nas zonas onde há eleitores que tenderão a votar contra quem está no poder. E na ausência de recenseamento automático e de cartões de identificação emitidos gratuitamente, as exigências colocadas para que se possam recensear e votar acabam por depender também daquilo que mais convém a quem manda. Quanto maiores os requisitos de identificação dos eleitores, menor a participação dos mais pobres e das minorias étnicas. A tendência para o reforço dessas exigências acentuou-se nos últimos anos em estados dominados pelo partido Republicano, com o previsível impacto negativo nos resultados dos democratas.

Depois temos o desenho dos círculos eleitorais. Após cada recenseamento da população, é preciso determinar quantos representantes são eleitos em cada estado e as novas fronteiras dos círculos eleitorais que vigorarão durante a década seguinte. Na maior parte dos casos, essa tarefa cabe aos órgãos legislativos estaduais. O resultado previsível é conhecido pelo nome de gerrymandering. Com a ajuda de dados políticos e demográficos e sistemas de informação geográfica, os partidos no poder conseguem fazer com que os eleitores do partido da oposição sejam concentrados no menor número possível de círculos, ao passo que quem governa tenha maiorias, mesmo que apertadas, no maior número possível de círculos. O efeito pode ser estrondoso. Nas últimas eleições para a Câmara dos Representantes em Maryland, o partido Republicano teve 32% dos votos mas elegeu apenas 13% dos representantes. E no Wisconsin, os democratas tiveram 53% dos votos mas apenas 38% dos representantes. Para combater o fenómeno, uma minoria de estados criou comissões independentes encarregadas de redesenhar os círculos, mas nem todas elas têm uma composição politicamente paritária ou genuinamente independente. O resultado é que, de dez em dez anos, em vez de serem os eleitores a escolherem os eleitos, “são os que governam e os seus agentes políticos que escolhem os seus eleitores”.

É certo que o termo gerrymandering foi criado em 1812, em honra do governador Elbridge Gerry, que desenhou um círculo eleitoral com a forma de uma salamandra (na verdade, mais parecido com um dragão). Apesar de estarem mais limitados tecnologicamente, os políticos americanos dos séculos XIX e XX já praticavam a coisa com alguma eficácia. É também verdade que o consenso académico, até há pouco tempo, era o de que estas maquinações de uns e de outros acabavam, globalmente, por se cancelar umas às outras. Contudo, em contraste com o papel decisivo que desempenhou nos anos 60 para travar as maiores distorções, o Supremo Tribunal Federal americano tem, desde o início deste século, devolvido estas questões aos estados. O resultado, a partir do ciclo de 2010, foi a aceleração dramática das distorções na relação entre votos e mandatos, em claro desfavor dos democratas, dado disporem de controlo unificado dos órgãos de governo em menos estados. E as consequências não foram apenas para a distribuição de poder entre partidos, mas também para o processo político como um todo: nos estados onde os enviesamentos criados pelo gerrymandering são maiores, as políticas públicas acabaram também elas por se desviar de forma mais acentuada das preferências dos eleitores e a competitividade eleitoral e a qualidade dos candidatos diminuíram.
A América não é a Bielorrússia. Mas importa não sobrestimar a “normalidade” da política americana.
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