Sobre os rankings e o "cheque-escolar"
Posted November 5th, 2007 at 4:49 pm1 Comment
No Público de ontem, sobre os rankings, para além de ser provavelmente o primeiro colunista na história da imprensa escrita a usar a expressão Hierarchical Linear Modelling num jornal de grande circulação, André Freire diz o óbvio, mas um óbvio que vale a pena repetir:
Penso que é preciso ultrapassar este nível de discussão (até agora baseado numa troca de argumentos sustentada, na melhor das hipóteses, numa análise metodologicamente insuficiente dos dados) para passarmos a um debate alicerçado em evidência empírica avaliada com as metodologias adequadas.
Mas importa perceber o que significa “ultrapassar este nível de discussão”. Em primeiro lugar, como assinala o próprio André Freire, significa que é imperioso recolher dados a nível individual de forma a que as “causas” (na medida em que qualquer estudo observacional possa apurar causas) do desempenho escolar individual, em particular as ligadas ao ambiente escolar, possam ser estimadas controlando os efeitos de variáveis ligadas ao capital escolar e económico dos pais.
Em segundo lugar, significa também perceber que os efeitos desse capital escolar e económico são, em certo sentido, triviais. É obvio que eles existem e estão mais do que demonstrados. Mas no que diz respeito às políticas públicas, esses efeitos são tão desinteressantes como os efeitos, por exemplo, do desenvolvimento económico na estabilidade dos regimes democráticos. Ou para irmos mais directamente ao tema, são quase tão desinteressantes como os efeitos das capacidades cognitivas inatas (que também existem) dos alunos no seu desempenho escolar. Aquilo que queremos saber é que outros factores, cuja modificação a curto e médio-prazo esteja ao alcance da vontade dos educadores, dos pais, das escolas e dos decisores políticos, exercem efeitos para além e independentemente (ou em interacção com) esse capital escolar e económico ou essas capacidades inatas. É verdade que – voltando ao ponto anterior – só podemos saber que factores são esses se controlarmos os efeitos do capital escolar e económico das famílias (e seria bom termos medidas de capacidades inatas, mas como provavelmente nao podemos em contextos não experimentais, o que teremos no final é muita variância não explicada). Mas o ponto é este: se é verdade que essas variáveis de controlo não podem ser esquecidas, também não se pode pressupor que tudo é subsumido por elas. É preciso estudar o assunto como deve ser, e pronto.
Em terceiro lugar, ultrapassar o actual nível de discussão significa também assumir que a simples dicotomia público/privado é uma péssima e provavelmente inválida maneira de medir seja o que for de relevante sobre o ambiente escolar e os efeitos que esse ambiente pode induzir sobre o desempenho. Citando o relatório que André Freire menciona no seu artigo:
“It should be borne in mind that private schools constitute a heterogeneous category and may differ from one another as much as they differ from public schools. Public schools also constitute a heterogeneous category. Consequently, an overall comparison of the two types of schools is of modest utility.”
Como deveria ser óbvio – pensava eu – o que interessa é estimar os efeitos de atributos do ambiente escolar – condições físicas e materiais, práticas educativas, currículos, etc, etc, etc – que podem ou não estar correlacionados entre si ou com a dicotomia público/privado. Se não estimarmos os efeitos destes aspectos, não ficamos a saber nada de relevante no final. “Privado melhor do que público”? “Público não é pior que privado”? Frases úteis para discussões puramente ideológicas, inúteis para tudo o resto.
Em quarto lugar, ultrapassar o actual nível de discussão significa também pressupor que os bons modelos explicativos do desempenho escolar serão certamente muito complexos, incluindo efeitos de interacção entre características individuais, efeitos de características contextuais sobre desempenhos individuais e efeitos de interacção entre contextos e atributos individuais. Dou um exemplo: é quase garantido que uma das coisas que mais deverá potenciar o bom desempenho dos alunos de escolas altamente selectivas no seu recrutamento é não apenas o facto de cada um dos alunos estar mais bem equipado para o sucesso escolar mas também o facto das turmas onde esses alunos estão serem compostas por um conjunto de alunos homogeneamente bem equipados para o sucesso. O primeiro efeito é individual; o segundo é contextual.
Disto isto, um ponto adicional sobre o cheque-escolar. Independentemente da minha opinião sobre o assunto – que confesso ainda não sei bem qual é – suspeito que a ideia tem muito menos receptividade entre os proprietários e dirigentes das melhores escolas privadas portuguesas do que aquilo que os defensores da ideia imaginam.
Primeiro, porque a introdução do cheque-escolar poderia levar ao que acabou por suceder na Suécia, ou seja, a proibição de cobrança, pelas escolas privadas, de mensalidades adicionais acima do valor do voucher (em moldes semelhantes, por exemplo, aquilo que defende o Partido Conservador no Reino Unido). Para as melhores escolas privadas portuguesas, que têm procura muito superior à oferta e cobram mensalidades muito superiores àquilo que o valor do “cheque-educação” alguma vez poderá ser no contexto português, uma medida destas seria um desastre.
Segundo, a introdução do voucher quase certamente obrigaria a regulação e monitorização dos critérios de admissão. Tal como sucedeu na Suécia, as escolas inscritas no esquema deixariam de poder recusar a admissão de alunos menos qualificados. Isto seria igualmente desastroso para as melhores escolas privadas portuguesas. Por um lado porque, como já vimos, é altamente provável que a homogeneidade das turmas “por cima” seja um factor favorável não só – como é óbvio – para o desempenho “agregado” das escolas (que essas escolas querem manter a altos níveis de forma a preservarem altos níveis de procura) como também para o desempenho individual de cada um dos alunos. Por outro lado, uma das maneiras como as melhores escolas privadas colocam um “premium” adicional ao produto que estão a vender consiste em restringir os critérios de admissão através de “cunhas”. Como qualquer pessoa de classe média-alta que tenha filhos em idade escolar (ou que tenha amigos nessas condições) sabe perfeitamente, são raríssimos os casos de alunos que entram nos melhores colégios privados em Portugal sem “cunha” (talvez o St. Julian’s seja a excepção, mas nem disso estou certo). Isto cumpre uma função essencial: preservando a homogeneidade social dos colégios através de um recurso às redes sociais dos pais, estes ficam a saber que, ao colocarem o filho no colégio, estão também a dar-lhe acesso a uma rede de relacionamentos que traz consigo uma coisa simples mas fundamental: capital social. Os vouchers colocariam isto em risco, e isto é algo que nenhum bom colégio privado (nem os pais que os procuram) querem realmente perder. É triste? Talvez. Mas é assim.
Sobre o assunto, aconselho a leitura:
http://ocontradito.blogspot.com/2005/11/educao-estabelecimentos-privados.html